Uma “Disneylândia de pautas” talvez seja a melhor definição para o IAA Transportation, maior feira de mobilidade do planeta. É lá onde são apresentados os principais lançamentos e tendências em transportes para a Europa e influencia mercados por todo o mundo, inclusive o brasileiro. Podemos destacar duas questões geopolíticas marcantes e igualmente relevantes no evento.
No primeiro caso, as montadoras cobram formalmente a implementação de infraestrutura voltada para a eletromobilidade, permitindo o ganho de escala na produção de seus veículos. O outro fato marcante foi a presença maciça de empresas chinesas no evento, que tiveram pavilhão exclusivo para pequenos estandes de diversos sistemistas, bem como pelas montadoras que desfilaram tecnologia de ponta ao lado das principais marcas europeias. É um recado para todo o mundo de que eles sabem fazer caminhões e muito bem feitos a ponto de, também, induzirem tendências para o setor e é exatamente o que veremos em diante.
Enquanto os conglomerados europeus precisam sempre manter uma curva de crescimento financeira e produtiva para manter seus negócios aquecidos e dominantes em muitos países, atendendo à gana de acionistas, a China é um mundo à parte, que garante volumes impressionantes de produção. E é este o fato que tem permitido a aceleração dos investimentos em pesquisa e desenvolvimento no setor automotivo, assim como o intercâmbio de conhecimento por meio de joint ventures, o que tem resultado em um portfólio de veículos capaz de disputar com afinco a atenção dos consumidores ocidentais, mesmo diante do amplo leque de opções ofertado pelas tradicionais montadoras europeias. Ainda pode ser cedo para afirmar que os chineses serão protagonistas no mercado de veículos comerciais, mas o fato é que eles possuem totais condições para estabelecer uma hegemonia global em um futuro de longo prazo.
O que vimos na IAA
As principais montadoras europeias estavam presentes com grandes estandes, mas menores do que em outros tempos, considerando que em outros anos algumas marcas chegavam a ocupar pavilhões inteiros. Sim, o complexo de exposições que abriga o IAA contou com 15 dos quase 30 pavilhões disponíveis para o evento, incluindo as diferentes áreas externas.
A Mercedes-Benz se instalou em estande minimalista, mas temático. Sob o conceito de uma cidade, com ruas e faixas de pedestres, a montadora distribuiu exemplares de seus veículos elétricos pelo espaço, contemplando os modelos eActros 600, para médias e longas distâncias com autonomia superior a 500 km e que entrará em produção em novembro deste ano; o eEconic, para aplicação urbana na coleta de lixo; e o GenH2, movido a células de combustível a hidrogênio. O novo Actros L, movido pelo conhecido motor OM 471 a diesel, mas que adota a nova tendência de cabine oriunda do e600 também se fez presente no ambiente da marca, que ainda contou com o Truckopolis, um conceito de cidade digital presente nas demonstrações dos serviços da montadora via realidade virtual em uma torre de madeira ao centro do estande.
A Daimler também lançou a marca Truck Charge de carregadores para caminhões elétricos na Europa. De forma segregada, um pedaço do estande separado por uma parede foi destinado aos caminhões Fuso Canter em versões elétricas e a diesel. Uma mensagem importante voltada para o futuro do transporte se refere ao crescente aumento da digitalização dos veículos, que passa pelos diversos sensores voltados para a segurança e eficiência da operação, bem como pelos dispositivos de entretenimento e performance, em que a companhia aposta em superprocessadores que comportem todos estes sistemas no futuro.
Já a DAF destacou os modelos XD, XF, XG e XG⁺, equipados com os motores diesel Paccar MX-11 e MX-13 com novo sincronismo de válvulas, bomba de refrigeração de acionamento duplo, compressor de ar de 2 cilindros, novo eixo traseiro, novo design do pinhão e novas relações do eixo traseiro. Entre os veículos elétricos, a montadora expôs os modelos XB, XD e XF para aplicações urbanas, regionais e de média-longa distância com autonomia de até 500 quilômetros. A DAF também apresentou o motor MX-13 preparado para biodiesel HVO e B100.
Visualmente, o VNL 860 elétrico, produzido e comercializado nos Estados Unidos, foi o produto que mais se destacou no estande da Volvo, justamente por seu design diferenciado. Todavia, os produtos voltados para eficiência energética merecem destaque técnico, como no caso do modelo FM com motor ciclo diesel para gás com potência de 500 cavalos, uma inovação que utiliza do diesel apenas para gerar a centelha necessária para ligar o motor, que tem sua energia gerada por GNV. Modelos puramente elétricos, como o novo FH com 600 quilômetros de autonomia e a células de combustível a hidrogênio deram a tônica do espaço da IAA.
Uma inovação marcante foi apresentada pela Scania, que apresentou um caminhão (R 460) capaz de rodar – simultaneamente – com gás natural comprimido e liquefeito, permitindo ao cliente decidir se prefere configurar o seu cavalo-mecânico com um dos combustíveis ou se adota um tanque para cada tipo de gás. Outra mensagem importante é que os biocombustíveis podem ser uma rota mais econômica e sensata para descarbonizar o transporte em determinados países. Veículos elétricos também marcaram presença em seu estande.
Também direcionada para a descarbonização do transporte, a Iveco promoveu a estreia dos modelos elétricos S-eWay Rigid (rígido) e eMoovy, um veículo comercial de 3,5 toneladas desenvolvido em parceria com a Hyundai. Em sua participação, a montadora também exaltou a parceria estabelecida com o Metallica, por meio de veículos e instalações com o tema da banda de trash metal.
Com uma gama eletrificada que varia produtos de 12 a 50 toneladas, a MAN destacou o lançamento do modelo eTGL, um caminhão urbano de 12 toneladas com autonomia para até 235 quilômetros com uma carga de bateria. O cavalo-mecânico com motor a combustão de hidrogênio MAN hTGX foi apresentado como um spolier do que o consumidor europeu terá acesso a partir de 2025. Os veículos a diesel permanecerão tendo protagonismo comercial por um bom tempo, apesar de todos os esforços para a eletrificação do transporte e uma prova disso é o lançamento do motor D30, baseado na plataforma de componentes compartilhados do Grupo Traton, iniciado com os propulsores Super, da Scania.
China
Seguramente, os produtos mais exóticos da feira foram apresentados pelos chineses, enquanto os europeus tiveram uma presença mais “pé no chão”. Entre os projetos mais diferentes aos nossos olhos, destaco a Kayun Energy, que desenvolve produtos personalizados para diferentes nichos. Com design que parece ter saído de filmes apocalípticos e cyberpunks, o Truck – Hundred Tons se destaca por suas dimensões, que incluem 3,450 mm de altura, 2,550 mm de largura e 11,200 mm de comprimento. Seu motor possui 520 kw de potência, o que corresponde a 707 cavalos, que proporciona velocidade máxima de 89 km/h e até 800 quilômetros de autonomia. Se trada de um caminhão para aplicação exclusiva em ambientes confinados. A marca levou mais dois veículos ao IAA, incluindo os comerciais leves Van – Tem Cubic e Courier Delivery Vehicle – One Meter, que também se destacam por sua aparência diferente.
O Shandon Heavy Industry Group esteve presente por meio das marcas Shacmoto (Shacman), Sinotruk e Sitrak em estande que transpirou alta tecnologia, potência e tendências. Destaque para os modelos X6000 de 840 cavalos, sendo o bruto de série mais potente do mundo; o conceitual Aero7, que conta com design de cabine que mistura elementos da cultura milenar chinesa com traços futuristas, porta que abre “ao contrário”, tal como um FNM, acabamento interno altamente sofisticado que inclui efeito constelação no teto, entre outros atributos; além de veículos elétricos e híbridos para todas as faixas de mercado.
Tradicional fabricante de ônibus, a KingLong apresentou o caminhão Merry Haul com propulsor híbrido elétrico/hidrogênio que proporciona autonomia superior a 1.000 quilômetros, além de um comercial leve com design voltado para melhor aerodinâmica. A Higer, que atuará com seus caminhões no Brasil, mas não na Europa, lançou o ônibus Azure7, que também será comercializado em nosso país.
Bastante conhecida do mercado brasileiro, a BYD ampliou a sua linha de caminhões elétricos no Ocidente com os modelos ETH8 de 19 toneladas, o ETM6 de 7,5 toneladas, além da van e-Vali em configurações para 3,5 e 4,25 toneladas (equipado com as novas baterias BYD Blade, que concentram maior densidade energética). Com menos alarde, a JAC Motors também esteve presente na feira com seus caminhões elétricos.
Outros destaques e ausências
Muitos outros destaques também impactaram a IAA Transportaion 2024, como a Ford Trucks, que ocupou o maior estande de sua história no evento em linha com a sua estratégia de acelerar a presença da marca na Europa Ocidental, especialmente. A montadora levou o caminhão elétrico F-Line E, a linha F-MAX, incluindo a edição limitada Select, além do novo motor diesel Ecotorq Gen2 de 14,8 Litros e seis cilindros.
Outra marca turca com presença destacada foi a Habas, que pretende abrir operações por toda a Europa para a comercialização de caminhões e ônibus elétricos, incluindo o cavalinho SteelPower-2 4×2.
Aqui, destaco a maior decepção de toda feira: o Tesla Semi Truck. Apesar de todo o alvoroço que se observa em torno da marca de Elon Musk, o que se viu foi um caminhão inadequado para o mercado europeu e também para o Brasil. Em termos de acabamento, o veículo lembra aqueles produtos chineses do começo do século com borrachas soltando nos contornos das portas e janelas, pintura mal feita, entre outras características que devem limitar sua presença fora do mercado estadunidense, como a barra de direção em que se pode regular apenas a altura, mas não a profundidade. Ou seja, no caso de motoristas mais altos, a posição do volante poderá se assemelhar ao de uma Kombi, ficando quase que na horizontal.
A Steyr Automotive destacou dois cavalos mecânicos elétricos com autonomias de 300 e 500 quilômetros, além de um modelo autônomo descabinado: o SuperPanther, dedicado ao transporte de contêineres em ambientes confinados com raio de até 10 quilômetros de circulação, como em portos ou hubs logísticos. Seu design impressiona, mas não chega ser uma novidade, pois a Volvo já mostrou um veículo com essa característica em 2018 e, atualmente, a Suzano testa um caminhão da Lume Robotics em suas operações no Brasil.
A divisão e-Mobility da Irizar também marcou presença com o modelo ieTruck, voltado para aplicações urbanas de coleta de resíduos e distribuição. A Bosch criou um caminhão conceito estático, exclusivamente para apresentar as suas tecnologias voltadas para as diferentes etapas da automação da mobilidade, incluindo um dispositivo anti-hack para proporcionar a devida segurança aos veículos deste tipo.
Outros sistemas e veículos voltados para a eletrificação da mobilidade também foram vistos no Phinia, na Valeo, na CATL, na LG, Samsung, Eaton, ZF, Allison, Schaeffler, Continental, Mahle, Maxion, entre diversas outras empresas que, de uma maneira ou de outra, também prometem melhorar a eficiência do transporte comercial. Vale, ainda, como último destaque a presença de um caminhão estadunidense Peterbilt autônomo, oriundo de desenvolvimento conjunto entre a Aurora e a Continental.
Entre as ausências sentidas no IAA Transportation, independentemente de seus motivos geopolíticos, estratégicos ou financeiros, podemos mencionar as montadoras Renault Trucks, Tatra, Sisu Auto, Kamaz e Ginaf, por exemplo.