A Digitalização da Mobilidade deve priorizar as pessoas

Políticas públicas voltadas para a mobilidade devem abandonar a abordagem centrada no automóvel e se concentrarem no interesse público.

Por Gustavo Queiroz

- abril 12, 2025

Imagem meramente ilustrativa gerada por IA | Frota&Cia

O entendimento sobre a mobilidade é moldado por elementos que vão muito além da infraestrutura, dos modais de transporte, custos e tempo em trânsito, por exemplo. A mentalidade das pessoas é moldada, sobretudo, por influências socioculturais que interferem na percepção de locomoção própria e de outros indivíduos. Uma prova disso é que os meios de transportes são balizadores sociais usados, frequentemente, para projetar o status social.

Tais percepções foram impostas, subconscientemente, por modelos de mídia, de publicidade, por diferentes vieses de entretenimento. Este entendimento é fundamental para transformar a mobilidade em um sistema amplo, integrado e altamente inclusivo. Afinal, como disse o filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau, que viveu no século XVIII, “o homem é produto do meio”. Este é o ponto de partida!

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A eficiência da mobilidade é um dos pilares mais relevantes para o sucesso dos planos de proteção climática no Brasil e, também, em todo o planeta. Para se ter uma ideia, o relatório Net Zero Readiness Report 2023, da KPMG, destaca que os setores que mais emitiram gases de efeito estufa em 2022, no Brasil, são a agricultura, responsável por 46% dessas emissões, transportes com 16% e resíduos com 13%. Entre 2005 a 2022, o transporte foi o segmento com o maior aumento nas emissões absolutas durante o período, chegando a 53%. Em termos de intensidade das emissões de 2005 a 2022, o setor de transportes foi o único a registrar aumento de 10%. Portanto, precisamos de um sistema de transporte inteligente que proporcione serviços livres de emissões e mais qualidade de vida nos deslocamentos.

Os trabalhadores estão voltando cada vez mais aos escritórios. O que era um ótimo home-office pleno que começou durante os anos de pandemia, agora as pessoas intercalam com 1, 2, 3 dias presenciais em ambientes de trabalho que exigem a presença física de seus funcionários. Algumas empresas demandam toda a carga de trabalho em seus locais. Este é um fato que tem aumentado o tráfego nas cidades. Nas estradas, o turismo de passeio e também o de trabalho ficou mais intenso, aumentando as quantidades de gases de efeito estufa na atmosfera.

Apesar das promessas para reduzir as emissões do transporte, os níveis de CO2 emitidos pelos veículos continuarão crescendo na próxima década de acordo com estudo do Fórum Internacional do Transporte (ITF, na sigla em inglês). O crescimento populacional mundial atrelado com a globalização das sociedades aumentará a demanda global de passageiros em 79% até 2050, o que deve gerar o dobro da demanda atual por fretes.

Portanto, um conjunto de medidas se faz necessária. O hábito das pessoas precisa mudar para comportamentos mais sustentáveis, a independência dos combustíveis fósseis por meio de novas tecnologias de transportes, sistemas mais eficientes de mobilidade, bem como a digitalização dos serviços. Tudo isso é muito caro, mas o mundo precisa se preparar para financiar tais necessidades, inclusive em países de economias emergentes.

Uma mobilidade eficiente deve contemplar o conceito de Mobilidade como Serviço, integrando os transportes públicos, caminhadas, ciclismo e outros serviços que transformem, positivamente, as rotinas de mobilidade.

A digitalização melhora a usabilidade da mobilidade por meio de sistemas apoiados por inteligência artificial que sejam capazes de fornecer planejamento e reserva de rotas. Imagina que você está esperando um ônibus no ponto e que não conhece os horários do itinerário, ou que ele possa ter tido algum contratempo em seu trajeto. Saber desta informação será determinante para uma tomada de decisão, que pode ser esperar o próximo ônibus, caminhar, acionar um serviço de carona por aplicativo, visitar um comércio local nesse meio tempo ou qualquer outra coisa que lhe passe pela cabeça.

O avanço da qualidade e da capacidade de troca de dados de mobilidade deve possibilitar o planejamento e a otimização do tráfego em tempo real. Infelizmente, ainda é comum que a gestão de tráfego aconteça embasado em pesquisas desatualizadas ou medições de tráfego incompletas. Dessa forma, os grandes volumes de dados e a inteligência artificial podem ser empregados no aperfeiçoamento da mobilidade, reduzindo congestionamentos e emissões.

Incentivar o trabalho remoto é bom para o trabalhador, para a saúde das cidades e para o planeta. E isto sem entrar outros em assuntos pertinentes, porém sensíveis, como a redução da escala 6×1 ou da jornada de 8h diárias sem perda salarial.

É de senso comum que a transformação para uma EcoMobilidade deve ser planejada a longo prazo e controlada de forma dinâmica, atendendo as futuras necessidades das pessoas. Isto demandará dados atualizados e detalhados, bem como a capacidade para analisar e desenvolver modelos, assim como de avaliar e prever os efeitos das medidas relacionadas. Para tanto, a digitalização do transporte demandará a inversão de prioridades, hoje pertencente ao transporte individual em relação ao coletivo, que é uma bandeira levantada a muito tempo por especialistas em mobilidade e também por urbanistas.

A digitalização é também um pré-requisito para que os políticos e órgãos responsáveis definam estratégias e estabeleçam uma nova cultura de mobilidade que questione os sistemas de transporte, bem como o comportamento das diferentes camadas sociais. A elaboração de políticas públicas deve prever o conceito de cidades inteligentes e, portanto, deve considerar dados de mobilidade, a promoção de serviços digitais, a intermodalidade, a condução autônoma e conectividade no transporte público de passageiros.

De toda forma, os objetivos somente serão alcançados se a ecomobilidade for atrativa, sobressaindo-se aos automóveis particulares, o que só ocorrerá se o planejamento de transporte urbano for feito de forma integrada. É vital melhorar os modos de transporte, incluindo combustíveis altamente eficientes e não poluentes, bem como uma rede de reabastecimento e recarga rápidas.

Ao atrair um público maior para os modais de transportes de massas, o sistema deverá prever uma logística flexível de último quilômetro para que as pessoas possam acessar a rede de mobilidade ou para chegar em seu destino final, similar ao planejamento da distribuição urbana de cargas. Dessa forma, abre-se oportunidades para serviços de locação, empréstimo ou carona de veículos indicados para esse tipo de aplicação, incluindo bicicletas e patinetes tradicionais ou elétricos, motos elétricas, entre outras formas de locomoção.

Outro aspecto relevante é que a disponibilidade ao transporte precisa ter frequência que atenda os interesses e necessidades das pessoas, permitindo uma locomoção personalizada em substituição à praticidade do automóvel particular. A estratégia deve destacar as vantagens sustentáveis da mobilidade coletiva e planejada sobre o individualismo.

Um desafio fundamental é a construção rápida, segura, coordenada e de baixo custo de novas tecnologias de mobilidade por meio de sistemas que levam em conta as necessidades de diferentes grupos da população, como idosos e jovens, população urbana e rural, com e sem filhos, e de alta e baixa renda, proporcionando previsibilidade de frequência e disponibilidade de itinerários.

A digitalização do transporte começa neste momento por meio do desenvolvimento de uma plataforma integrada e inclusiva voltada para o conceito de Mobilidade como Serviço. Para tanto, um aspecto fundamental para a eficiência da EcoMobilidade é minimizar o esforço cognitivo necessário, pois a utilização da mobilidade pública deve ser intuitiva e simples, por uma questão de conforto para todos, mas, sobretudo, para a inclusão de todas as pessoas. Há vários bons exemplos de dispositivos e sistemas intuitivos a serviço das pessoas por aí, como celulares e outros.

A digitalização do tráfego de dados com maior qualidade e em tempo real permitirá maior previsibilidade, capacidade de análise e poder de decisão para uma gestão de tráfego eficiente e devidamente orientada.

A melhor mobilidade é aquela que não causa trânsito, por isso que a digitalização para uma mobilidade voltada para o serviço é crucial. Por exemplo, trabalhadores podem aceitar viagens mais longas no transporte público se souberem que o tempo pode ser aproveitado com qualidade para estudos ou para entretenimento.

O futuro da mobilidade também passa pela automação do transporte, que temos visto avançar a passos largos, inclusive no Brasil. Por aqui, o mercado já conta com opções de condução autônoma, semiautônoma e por rádio controle, sendo todas as tecnologias disponíveis para aplicação exclusiva em ambientes controlados. Mas, vai chegar o dia em que os sistemas serão tão avançados que a automação da mobilidade será regulamentada e permitida nas chamadas cidades inteligentes e nas rodovias, também. Dessa forma, pode ocorrer a preferência pelo transporte individual em detrimento do transporte público, considerando que esse tipo de transporte prevê mais segurança e eficiência.

Há também uma tendência de automação do transporte público, pois a tecnologia já está em desenvolvimento e os testes estão acontecendo há algum tempo, sobretudo, na China.

A digitalização facilita a intermodalidade, abrindo caminho para uma rede possivelmente mais atraente do que a mobilidade individual, o que não era possível anteriormente. O pré-requisito para qualquer solução de mobilidade integrada e digital é a utilização de dados, que permitirá a oferta de soluções personalizadas a partir do acesso a informações como rotinas diárias, velocidades de caminhada e rotas preferidas, por exemplo. Todavia, é preciso um sistema de anonimização dos dados, afinal, ninguém quer se sentir vigiado.

Outro ponto de atenção é que uma viagem intermodal eficiente não deveria envolver vários aplicativos, pois incomoda o usuário. Ainda que sejam interfaces práticas, elas são diferentes entre si podem atrapalhar a compreensão de parte dos usuários. Tais serviços poderiam ser integrados a uma plataforma aberta e responsável pela gestão geral dos aplicativos, por exemplo. Aliás, é como um site de viagens que reúne as ofertas em um único ambiente e todo mundo continua ganhando. É importante reforçar que os usuários desejam viajar de forma flexível e espontânea, sem a necessidade de vincular vários meios de transporte ou comparar preços por conta própria. Tudo deve estar em um único cardápio. Portanto, o desenvolvimento de um sistema intuitivo e completo que integre todas as soluções individuais deverá contemplar e padronizar as informações sobre modais, trajetos, reservas, tarifas e bilhetes.

Como o estudo que estamos tratando por aqui se refere ao mercado alemão, a proposta é de que o sistema integre todo o país e que não seja feito apenas por praças pioneiras ou por iniciativa individual de alguma cidade. No caso do Brasil, um país de proporções continentais, talvez possa haver uma divisão por estados.

Os motoristas de automóveis desfrutam de vários privilégios. O espaço viário é projetado, principalmente, para atender às suas necessidades. Além disso, o aumento da disponibilidade de vagas de estacionamentos privados foi um grande incentivador à propriedade privada do automóvel, que foi turbinada pela política de estímulos econômicos pautadas em descontos, condições de financiamento e isenções tributárias. Portanto, a expansão da EcoMobilidade precisa ser acompanhada por mudanças na regulamentação da mobilidade, sobretudo nos incentivos de preços para automóveis particulares e no planejamento urbano e de transportes, abordando os aspectos simbólicos e emocionais associados à posse de um automóvel. Uma eficiente media seria a limitação da velocidade máxima nas cidades a 30 km/h, tornando o ciclismo mais acessível, além de facilitará o fluxo do tráfego. Afinal, a redução da velocidade máxima ajuda a organizar o trânsito, aumentando a sua eficiência. A propósito, a velocidade de 30 km/h já é regulamentada dentro dos bairros, demandando ajuste apenas em avenidas.

Conclusão

A transição da mobilidade é essencial para enfrentar a crise climática. Portando, deve-se considerar todas as estratégias disponíveis para descarbonizar o transporte. Prioritariamente, precisamos considerar a redução do tráfego por meio de uma EcoMobilidade intermodal e eficiente, bem como melhorar eficiência das energias renováveis. Dessa forma, abandonar a abordagem centrada no automóvel é a única alternativa sensata para que seja bem-sucedida a transição da mobilidade.

Portanto, a alternativa sustentável ao sistema atual deverá contemplar a redução do tráfego para comportar uma trafegabilidade eficiente, o que somente será possível por meio da digitalização dos serviços integrados de ônibus, trem, metrô, caminhada e ciclismo. Os serviços de caronas, veículos compartilhados e as estações móveis devem estar interligados uma única plataforma, tornando as viagens confiáveis, seguras e inclusivas. Não há outra maneira para a EcoMobilidade superar os carros particulares. A transformação e o design de um sistema em rede requerem políticas coordenadas e inteligentes.

O caminho para essa transformação consistirá em muitos pequenos passos melhorar a qualidade da mobilidade, incluindo coordenação jurídica e de financiamento durante o processo de transformação. Um espaço de dados comum se faz necessário, permitindo sua disponibilidade para todos os prestadores de serviços de mobilidade, bem como para que os usuários possam planejar suas viagens de forma otimizada. O estudo em questão prevê que tais medidas criem a base para um mercado de mobilidade competitivo, evitando a monopolização.

Esse tipo de planejamento deve contemplar os serviços públicos e privados, bem como novos provedores de mobilidade. Os modelos de negócios devem incluir as oportunidades e necessidades de cooperação de forma eficientes e financeiramente viáveis.

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