Após contabilizar R$ 36,2 bilhões de reais em prejuízo, de março de 2020 até fevereiro deste ano, o transporte público urbano enfrenta o desafio de recuperar parte da demanda que perdeu no período da pandemia. O presidente executivo da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), Francisco Christovam, explica que, na situação atual, as empresas operadoras do setor buscam recuperar os 17,2% de passageiros perdidos para o período.
Os motivos para a queda na demanda, segundo Christovam, vão desde o home office até ex-usuários, que durante o isolamento social precisaram se deslocar de formas alternativas optando pelo conforto e não querem mais se submeter à situação anterior, como enfrentar veículos lotados. Os tipos de deslocamentos alternativos a que ele se refere são carros por aplicativo, bicicleta, carona solidária, moto e outros meios.
“Esse passageiro, que antes se preocupava apenas com a regularidade e confiabilidade do serviço, agora quer, além de regularidade, confiabilidade, pontualidade, lotação menor, segurança maior no deslocamento, condições de espera dos veículos nos pontos e estações de embarque e desembarque de melhor qualidade, e assim por diante. Ou seja, ele se tornou um cliente mais sofisticado e que está mais exigente. E se nós quisermos trazer de volta esse passageiro, temos que mudar a qualidade do serviço prestado, se não ele não volta”, explica.
O presidente executivo da entidade elenca três grandes desafios para as empresas operadoras do setor: não perder mais clientes, atrair de volta os passageiros que perderam durante o período e atrair uma nova população.
Histórico do prejuízo
O impacto financeiro para o setor foi de R$ 11,8 bilhões em fevereiro de 2021 para R$ 36,2 bilhões registrados em fevereiro de 2023. “A receita das empresas dependem da tarifa, do pagamento da viagem pelo passageiro. Agora, se houve uma queda de demanda de 80%, houve uma queda de receita proporcional, também de 80%. Então como é que as empresas iam renovar frota, iam melhorar o atendimento?”, questiona Christovam. “Essa receita, infelizmente, ela nunca mais entra nos cofres das empresas operadoras, então é um dinheiro que foi literalmente perdido”.
Além disso, o período foi marcado por 21 operadoras que interromperam suas operações por um ano, até fevereiro de 2021; 55 interromperam a prestação de serviços, além de 13 empresas e 3 consórcios de empresas que entraram em recuperação judicial até maio de 2022, segundo a NTU.
Em 2021, houve uma tentativa por parte das empresas e entidades do setor, de aprovar o Projeto de Lei (PL) 3.364/20, do deputado Fabio Schiochet, que propôs um auxílio emergencial de R$ 4 bilhões para sistemas de transportes em cidades acima de 200 mil habitantes. O PL, porém, foi vetado pelo presidente da época, Jair Bolsonaro.
O resultado é de que houve uma redução de postos diretos de trabalho no setor que já acumula -90.088 empregos até janeiro de 2023, segundo o Painel de Informações do Novo CAGED. E a crise dos transportes urbanos também levou o setor a enfrentar 397 paralisações em 108 sistemas até maio de 2022, de acordo com a NTU.
“Foi um momento muito especial onde algumas empresas tiveram dificuldade inclusive de manter o serviço de subsistência, outras simplesmente recolheram e não renovaram frota. Tínhamos também problemas com a própria indústria, havia falta de componentes no mercado, as montadoras também não tinham veículos mais para entregar. Então houve toda uma conjuntura que nos levou a uma condição muito especial”, completa.
Oferta e demanda
De acordo com o executivo, no primeiro mês de lockdown, em março de 2020, a demanda de passageiros caiu para 20% enquanto a oferta da frota de ônibus permaneceu em 75%. Pouco mais de um ano depois, em fevereiro de 2021, a demanda subiu para 59,2% com uma oferta de 79,2% das frotas em circulação.
“Nós mantivemos uma oferta de (quase) 80%, ou seja, bem acima da demanda, por várias razões. A primeira delas eram as questões sanitárias, pois nós tínhamos que evitar a todo custo aglomerações. Depois, 2020 foi um ano eleitoral, então os prefeitos queriam se reeleger ou eleger seus sucessores e pediam para as empresas manterem a frota em operação”, explica.
Em maio de 2022, segundo a entidade, a demanda de passageiros subiu para 81,4% enquanto as empresas mantiveram uma oferta de 78,5%. Em fevereiro deste ano a demanda de passageiros apontava para 82,8% com relação ao período pré-pandêmico e oferta de 82,5%.
Política tarifária
A questão tarifária foi um dos pontos principais no que diz respeito às discussões realizadas sobre os serviços prestados nas cidades brasileiras. Christovam reforça que os operadores defendam a tarifa menor possível para os usuários do serviço, desde que haja uma separação dos conceitos de tarifa pública e tarifa de remuneração.
A tarifa pública é o valor que o usuário paga pelo transporte e a tarifa de remuneração é o valor real do serviço prestado, segundo o que consta na Lei de Mobilidade Urbana nº 12.587 de 3 de janeiro de 2012. O passageiro pode pagar integralmente pelo valor da prestação do serviço ou o poder público responsável pode subsidiar parte desse valor. Por exemplo, se o serviço de transporte em uma cidade custa R$ 6,00 por passageiro para o operador e a tarifa pública custa R$ 4,00, significa que aquela cidade subsidia R$ 2,00 para cada passageiro que utiliza esse transporte.
Com base nesses conceitos, Chistovam explicou que o problema é anterior à pandemia, mas que foi “escancarado” pelo período. Com o aumento no valor dos insumos, como combustível, preço dos ônibus, mão de obra, pneu, etc, automaticamente o valor da prestação desse serviço também aumenta. “Então, todos os insumos crescem. Estamos num processo de inflação contida, mas a inflação existe, os IPCAs estão aí para demonstrar isso. Estamos falando de coisa de, no mínimo, 10% ao ano, e o que acontece? Do outro lado, se a gente subir o valor da tarifa, a população não tem como pagar”.
Foi neste ponto que, de acordo com o executivo, as empresas levaram ao poder público a questão do aumento dos custos e, automaticamente, do custo do serviço. Para ele, era inevitável que não houvesse um aumento na tarifa, portanto, caso a autoridade optasse por não repassar o valor à população, seria necessário subsidiar esse déficit. Tudo isso somado à queda drástica na demanda, fez com que as empresas não tivessem mais condições de continuar com a prestação dos serviços.
Subsídios
Antes da pandemia, apenas 25 sistemas que atendem 132 cidades brasileiras possuíam subsídio definitivo da administração pública na tarifa de remuneração do transporte. Atualmente, esse número passou para 59 sistemas e 159 cidades, segundo levantamento da NTU.
De fevereiro de 2020 até maio de 2022, foram implementadas 153 iniciativas de concessão de subsídios pontuais em 138 sistemas. O objetivo foi reduzir o impacto da pandemia e garantir a continuidade do serviço.
Além disso, ainda de acordo com a NTU, atualmente 74 cidades brasileiras praticam o sistema de tarifa zero, ou seja, as prefeituras assumem completamente o valor da prestação de serviço e o usuário não tem custo com o transporte.
Dentre esses municípios, 67 deles abrange todo o sistema em todos os dias da semana, 3 deles apenas em dias específicos e nas outras 4 abrange parcialmente o sistema de transporte em todos os dias da semana. Em 61% dos casos, a tarifa zero é praticada em cidades com menos de 50 mil habitantes.
Christovam denomina essas mudanças como um novo momento no setor. Ele destaca que a qualidade do serviço é definida pelo poder público, desde que arque com as despesas necessárias para oferecer um melhor serviço aos munícipes.
“O poder público determina a qualidade do serviço que quer oferecer aos seus munícipes, na qualidade de prefeitura. Não tem problema, faz o contrato e, ao invés de ser uma concessão pura, como a maioria dos contratos, passa a ser uma concessão patrocinada, como a gente chama. Ou seja, parte do pagamento pode vir do usuário ou vem na totalidade da própria prefeitura”, explica.
Expectativas para 2023
Mesmo com todas as dificuldades enfrentadas pelo setor, que foram potencializadas pela pandemia de Covid-19, o presidente-executivo da NTU vê o momento atual com boas expectativas. “Estamos em um novo governo, normalmente governos como do PT, se posso simplesmente usar essa expressão têm uma visão social. (…) nós achamos que vamos ter espaço político muito apropriado para discussão dessas questões todas, de Marco Legal, etc. Por isso as nossas expectativas são as melhores possíveis”, completa.
Christovam menciona que o transporte público está passando por uma revisão na relação entre poder público e a iniciativa privada. Ele lembra que o serviço foi incluído no artigo 6º da Constituição Federal de 1988, em 2015. A partir de então, o transporte foi incluso como direito social, mas o executivo sente que ainda não se incluía com a devida importância.
“Agora, as pessoas estão entendendo que o transporte é serviço público que inclusive viabiliza os outros. Sem o transporte o estudante não chega na escola, o doente não vai para o hospital, o trabalhador não chega no serviço. As pessoas não podem usufruir de lazer, as pessoas não podem sair para fazer suas compras. Então, na verdade a economia de uma cidade é extremamente dependente, a atividade econômica é extremamente dependente da qualidade do transporte que é oferecido à população”, finaliza.
Marco Legal
O Marco Legal, de acordo com Christovam, a base jurídica que regulamentará a relação de prestação de serviços de transporte público urbano, trata-se de uma pauta essencial para o setor e que a NTU, junto a outras entidades, vêm tentando levar ao Congresso Nacional há alguns anos.
Atualmente, duas iniciativas estão em discussão, uma delas do Ministério das Cidades, que possui um documento consultivo que o executivo denomina como “extremamente democrático”. Ele foi submetido a um fórum em que entidades de classe, movimentos sociais, profissionais liberais e outras instituições puderam opinar, sugerir e contribuir. A expectativa é que ele seja apresentado ao Congresso Nacional na Semana da Mobilidade em setembro deste ano.
O outro documento é o PL 3.287/2021 criado pelo ex-senador Antonio Anastasia que tramitou no mesmo ano, mas foi arquivado. Porém, na última semana, o Senado aprovou o requerimento do senador para desarquivamento e então seguirá para análise da Comissão de Infraestrutura.