Os desafios do transporte urbano – entre o Público e o Privado

Saiba porque a disputa por interesses pende sempre para o mesmo lado em uma licitação voltada para sistemas de mobilidade urbana e como isso poderia ser evitado

Por Gustavo Queiroz

- maio 24, 2025

Mobilidade urbana

Nas cidades brasileiras, os desafios do transporte urbano são um quebra-cabeça de responsabilidades compartilhadas. Os governos municipais desenham as rotas, fixam as tarifas e constroem a infraestrutura — dos pontos de ônibus mais simples aos corredores de BRT, obras que moldam o fluxo das metrópoles. Mas quem coloca os ônibus nas ruas, muitas vezes, são empresas privadas, vencedoras de concessões milionárias que definem, dia após dia, o ritmo do deslocamento urbano.

Licitações em mobilidade urbana
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Essas companhias assumem um peso considerável: compram frotas, contratam motoristas, mecânicos, gestores e uma rede de serviços que mantém as engrenagens girando. Cada contrato é um universo à parte, moldado pelas regras do município. O equilíbrio é delicado: o serviço precisa ser viável para os operadores, mas também acessível e eficiente para quem depende dele.

Na teoria, licitações bem estruturadas podem garantir tarifas justas, veículos modernos e sistemas ágeis. A prática, porém, muitas vezes decepciona. Concessões mal executadas alimentam a desconfiança de que o poder público não consegue impor padrões ou fiscalizar com rigor. Em 2018, especialistas do Banco Mundial apontaram quatro pilares essenciais para evitar esse descompasso.

Os Quatro Pilares do Transporte Eficiente são:

  1. Concorrência de Verdade
    O primeiro desafio do transporte urbano é romper com o círculo vicioso das licitações “encomendadas”. Muitas cidades negociam com operadores já estabelecidos, criando barreiras para novos participantes. Exigências técnicas excessivas ou cláusulas sob medida que beneficiam os mesmos grupos, sufocando a competição. Segundo com o documento do Banco Mundial, só uma disputa equilibrada pressiona as empresas a cortar custos, inovar e melhorar o serviço.
  2. O Prazo Certo
    Enquanto as empresas brigam por contratos longos — que garantam retorno sobre pesados investimentos —, as prefeituras temem ficar amarradas a modelos que podem se tornar obsoletos. A solução? Londres encontrou o meio-termo: concessões de 5 a 8 anos, tempo suficiente para o operador lucrar sem engessar a mobilidade urbana.
  3. O Incentivo que Funciona
    Multas e bonificações são ferramentas poderosas, mas mal aplicadas viram não surtem o efeito necessário. Penalidades exageradas, como a rescisão contratual, raramente são aplicadas. Já as sanções brandas permitem que empresas cortem custos — e qualidade — sem consequências. O segredo está em regras realistas, que penalizem falhas sem inviabilizar o negócio.
  4. Contratos Sob Medida
    Não existe modelo único. Em rotas de alta demanda, como corredores de BRT, contratos baseados em quilômetros rodados podem funcionar — o risco fica com o município. Já em linhas com flutuações de passageiros, modelos híbridos, que mesclam variáveis operacionais e receita tarifária, começam a surgir como alternativa.

Estado e o mercado

O transporte urbano é, por natureza, um jogo de interesses. Mas quando as regras são claras, a disputa deixa de ser entre poder público e empresas — e passa a beneficiar quem mais importa: os passageiros. Dito isto, vamos conversar sobre a encruzilhada entre o Estado e o mercado em termos de transporte público.

Nas últimas décadas, a maré da globalização e o avanço do neoliberalismo redesenharam o papel do Estado. O transporte público, outrora um bastião estatal, hoje navega em águas nebulosas — muitas vezes terceirizado, privatizado, fragmentado. Desde os anos 1980, monopólios públicos deram lugar à concorrência, mas essa abertura só se justifica se servir a um fim maior: o interesse público e a dignidade humana.

Enquanto o artigo 175 da Constituição Federal permanecer vigente, não há como ignorar que certas atividades — mesmo em meio à onda privatista — ainda carregam a chama da titularidade estatal. Em países do terceiro mundo, onde a desigualdade é crônica, os serviços públicos seguem sendo um farol para a emancipação social.

A França, berço do Direito Administrativo, elevou o serviço público à condição de pilar republicano. Essa ideologia atravessou oceanos, moldando sistemas jurídicos na América Latina. No Brasil, a doutrina ainda ecoa Léon Duguit, para quem o Estado não é soberano, mas um grande prestador de serviços.

Para Duguit, tudo o que o Estado faz — da polícia ao fomento econômico — é serviço público. Mas essa visão ampla esbarra em contradições: afinal, como conciliar a lógica do mercado com a coesão social?

O transporte é a veia que liga as economias modernas. Pode ser fonte de emprego, de divisas, de mobilidade — mas também de exclusão. Na teoria, a Constituição de 1988 garante sua organização aos municípios, sob o manto do interesse público. Na prática, as políticas urbanas privilegiam o carro, segregando quem depende do ônibus.

O Estatuto da Cidade promete cidades sustentáveis, com transporte digno. Mas o que se vê é um serviço cada vez mais inacessível, distante do conceito original de serviço público.

Quando o Estado delega a operação à iniciativa privada, surge um jogo de interesses antagônicos: de um lado, o lucro; do outro, o bem comum. Nas concessões de transporte, essa tensão é diária — e o usuário, preso no meio, paga a conta.

A licitação, segundo as promessas privatistas, deveria ser o ponto de equilíbrio, mas muitas vezes vira moeda de troca política. Prefeitos concedem linhas a aliados, parentes, em troca de favores. O resultado? Um sistema frágil, marcado por desconfiança e conflitos.

A saída, contudo, não está no desmonte do Estado, mas em sua reinvenção. As agências reguladoras surgiram como resposta à crise, mas ainda falta o principal: uma cultura de transparência.

Enquanto isso, o transporte público — essencial, mas negligenciado — segue como espelho de um país dividido entre o que a Constituição promete e o que o poder entrega. A pergunta que fica é: quando o Estado reassumirá seu papel de garantidor do bem comum?

Transporte como direito

A rua é um mar de gente. Todos os dias, milhões de pessoas se deslocam — algumas em carros, outras em ônibus que podem demoram a passar. Mas e se o transporte público fosse pensado não como negócio, mas como direito? Uma licitação com viés no serviço por meio de um sistema que coloque o bem-estar de todos como a cerne da atividade.

Não se trata apenas de levar passageiros de um ponto a outro, mas de garantir que todos, sem exceção, tenham acesso digno à cidade. Acesso universal significa que todas as pessoas, independentemente de suas capacidades, têm o direito de ao transporte. Isso significa que sistemas de mobilidade urbana, vias públicas e veículos devem ser projetados para atender a todas as necessidades, promovendo inclusão e mobilidade para todos.

Sustentabilidade exige frota elétrica, trilhos, ciclovias e projetar o ar mais limpo possível como meta. E a gestão? Precisa ser democrática, com assembleias populares decidindo rotas e tarifas. O lucro, aqui, é medido em qualidade de vida, não em dividendos.

O documento que abre a licitação não pode ser burocrático. Deve ter a voz das ruas. Consultas públicas para ouvir quem usa o transporte diariamente. Critérios que privilegiem cooperativas ou empresas comprometidas com justiça social. Tarifas subsidiadas, financiadas por quem pode pagar mais. E transparência — nada de contratos obscuros. Cada decisão, aberta ao escrutínio público.

A gestão pode ser estatal, mas não autoritária. Ou cooperativa, com motoristas e cobradores tendo assento na mesa de decisões. O planejamento deve ser centralizado, sim, mas costurado ao tecido urbano: estações perto de hospitais, linhas que conectam favelas a empregos. E o Estado não pode fugir à sua obrigação: investir em faixas exclusivas, veículos modernos, terminais dignos.

E quem paga a conta? Primeiramente, é preciso entender que o dinheiro não some, só muda de mãos. Em vez de subsidiar combustíveis de grandes empresas, por que não bancar passagens gratuitas? Impostos progressivos sobre grandes fortunas podem financiar o sistema. Parcerias entre municípios, estados e União evitam que a conta caia sempre no mais pobre.

A vigilância deve ser popular e os gestores e operadores deveriam ter o povo no espelho retrovisor, estando preparados para as adaptações necessárias ao longo do tempo, bem como para as cobranças diante de eventuais problemas.

Conselhos comunitários fiscalizando atrasos, superlotação, qualidade. Indicadores que meçam o que importa: menos poluição, mais satisfação, maior cobertura. Prestação de contas não só ao Tribunal de Contas, mas às praças públicas.

Curitiba mostrou que o sistema BRT pode funcionar; Bogotá provou que até em cidades caóticas o transporte coletivo avança. Viena ensina que tarifa barata é possível e só aqui no Brasil, mais de 100 cidades já operam com tarifa zero, livrando os passageiros das odiosas catracas. Mas há obstáculos, como a forte resistência de quem vê o transporte como mercado, a dificuldade de financiamento contínuo, o risco de participação popular virar fachada.

Eficiência social passa por um transporte público verdadeiramente coletivo, refletindo uma cidade que se enxerga como comunidade. Dessa forma, diante da configuração atual, até é possível operar com o modelo de concessões das linhas de transporte, mas este deveria o primeiro passo, não o último, que exclui os agentes interessados e os relegam a meros pagadores de contas e trabalhadores explorados. Sempre é preciso reforçar que política só importa se for de interesse público.

A Privatização de Serviços Públicos: Eficiência ou Exclusão?

A discussão sobre a privatização de serviços essenciais divide especialistas, economistas e cidadãos. De um lado, argumenta-se que a iniciativa privada traz eficiência; de outro, alerta-se para o risco de que o lucro se sobreponha ao direito de todos. Quando o tema é mobilidade urbana e envolve meios de transporte e sua infraestrutura, a pauta ganha contornos ainda mais urgentes. O que acontece quando o transporte, uma artéria vital para as cidades, passa para as mãos de empresas que respondem a acionistas?

Água, luz, transporte. Serviços que deveriam ser universais tornam-se, sob gestão privada, produtos sujeitos à lógica do mercado. Tarifas sobem, populações de baixa renda são excluídas, e o que era um direito transforma-se em privilégio, justamente porque o capitalismo se fortalece com o aumento da escassez. No Reino Unido, a privatização do setor de água deixou milhares de famílias sem acesso após cortes por inadimplência, sendo este um cenário que se repete em diversos países.

A busca por rentabilidade frequentemente leva a cortes onde o usuário não vê, mas sente: manutenção negligenciada, funcionários sobrecarregados, segurança fragilizada. No Brasil, a italiana Enel, por exemplo, se tornou sinônimo de apagões e atendimento moroso, evidenciando como a eficiência prometida nem sempre se materializa.

Alguns serviços são monopólios por natureza, ninguém constrói duas redes de metrô paralelas, por exemplo. A privatização, nesses casos, pode apenas trocar um gestor público por um dono privado, sem ganhos reais. Pior, quando as empresas passam a ditar as regras para seus próprios fiscais, a chamada “captura regulatória”, então o interesse público perde vez na mesa de decisões.

Quem define as prioridades quando um serviço essencial é privatizado? Acionistas ou cidadãos? A participação popular esvazia-se quando o transporte deixa de ser um bem comum para se tornar um negócio. É a democracia com pedágio.

Por exemplo, em São Paulo, as concessões de linhas de ônibus às empresas privadas foram seguidas por aumentos de tarifas acima da inflação, aumentando o peso no bolso de quem já vive no limite. O transporte, que deveria ser um equalizador social, vira mais um fator de exclusão.

A fragmentação dos sistemas de mobilidade reforça o caos na mobilidade urbana.
Ônibus de uma empresa, trem de outra, metrô sob um terceiro comando, entre outros exemplos. Quando cada modal opera sob interesses distintos, o passageiro paga a conta com horários desencontrados, bilhetes não integrados, esperas intermináveis, superlotação…

Há algum tempo eu escutei uma frase que foi chamada de mantra. “Onde o lucro não chega, o ônibus não passa” e isso serve para qualquer modal. Os bairros periféricos sabem bem que as rotas que não dão lucro são abandonadas. Em Londres, após a privatização de linhas de ônibus, comunidades pobres viram suas conexões minguarem. O transporte público, que deveria reduzir desigualdades, passa a aprofundá-las.

O adiamento de investimentos em infraestrutura reflete em problemas imediatos. Quando se concede um serviço público por décadas, muitas vezes os investimentos ocorrem apenas no curto prazo. A malha ferroviária britânica, privatizada nos anos 1990, deteriorou-se ao ponto de acidentes e paralisações—enquanto dividendos eram distribuídos.

Não é de hoje que se constata que as privatizações são, na verdade, parcerias onde o risco é público, e o lucro, privado. Alternativas existem. A gestão pública pode ser eficiente e um bom exemplo seria o metrô de Paris, referência ocidental mesmo sob controle estatal. Moscou, na Rússia, também possui um sistema eficiente e já foi considerado o mais bonito do mundo. Na China, sobretudo nos modelos de cidades inteligentes que estão se desenvolvendo por lá, também. Aliás, fica o spoiler de que teremos um novo episódio desta coluna justamente sobre as cidades inteligentes chinesas. Há quem diga que modelos híbridos, com empresas públicas profissionalizadas, mostram que não é preciso escolher entre o pior do Estado e o pior do mercado. Que se a privatização for inevitável, que ao menos venha com regras rígidas e participação social. O problema é que consultas populares costumam ser meros cumprimentos protocolares e imediatamente ignoradas para a boiada passar.

Privatizar não é proibido, mas é arriscado, porque quando serviços essenciais viram mercadoria, o custo vai além do financeiro e passa a mexer com a dignidade, a mobilidade, a vida de milhões de cidadãos. Portanto, a pergunta que fica é: eficiência para quem?

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