A estrada já não é de asfalto. É de dados. O veículo já não é de metal. É de software. O motor não ruge; processa. O volante não vira; executa algoritmos. Estamos no alvorecer de uma nova era sobre rodas, onde o valor de um veículo não se mede em cavalos de potência, mas em linhas de código, não em cilindradas, mas em capacidade de processamento. O Veículo Definido por Software (SDV) não é uma evolução; é uma revolução cultural, técnica e social que está desmontando a indústria automotiva peça por peça e remontando-a sob um novo paradigma: o do upgrade contínuo, da personalização infinita e da conectividade total.
Este não é um futuro distante. É um presente em construção acelerada, um canteiro de obras digital onde gigantes tradicionais e startups ágeis lutam pelo controle do que será, essencialmente, um smartphone com rodas. Mas, para além do jargão técnico e das promessas de lucro, o que está realmente em jogo é a redefinição da nossa relação com a mobilidade, a propriedade e a própria liberdade.
A pergunta parece simples: o que é um Veículo Definido por Software? A resposta, porém, é um labirinto. Depende de quem responde. Para o engenheiro, é uma arquitetura zonal que substitui centenas de Unidades de Controle Eletrônico (ECUs) por computadores de alto desempenho. Para o executivo, é uma nova fonte de receita recorrente através de assinaturas e atualizações over-the-air (OTA). Para o usuário, é a promessa de que o veículo que comprou hoje será melhor amanhã.
Moritz Neukirchner, da Elektrobit, propôs uma escala inspirada nos níveis de autonomia da SAE para classificar a maturidade de um SDV:
- Nível 0 (Habilitado por Software): O veículo tem software, mas este não o define. É o veículo tradicional.
- Nível 1 (Atualizável): A montadora pode corrigir bugs e atualizar software, mas o conjunto de funções é estático.
- Nível 2 (Atualizável com Upgrade): Comportamento dinâmico em um hardware estático. Começa a chegar perto de um SDV.
- Nível 3 (Plataforma de Software): Separa os ciclos de vida de hardware e software. Atualizações podem ser aplicadas em uma frota com hardwares diferentes.
- Nível 4 (Plataforma de Inovação): O SDV pleno. Um ecossistema aberto, como um smartphone, onde novos aplicativos podem fazer o hardware fazer coisas nunca imaginadas antes.
O consenso que emerge é que um SDV verdadeiro desacopla hardware e software, é atualizável, bem como pode remeter dados por OTA, coloca o software no centro do desenvolvimento e opera dentro de um ecossistema maior que inclui casas e infraestruturas definidas por software. É uma difícil transformação que esconde uma oportunidade monumental.
O coração da transformação é arquitetural. Os veículos tradicionais são verdadeiros Frankensteins com até 150 ECUs espalhados, cada um responsável por uma função mínima (tais como levantar o vidro, travar a porta, ajustar o assento). São sistemas isolados, com software embarcado e impossíveis de atualizar sem uma intervenção física. É pesado, caro e complexo.
O SDV assassina esse modelo. Ele implanta uma arquitetura zonal: poderosos computadores centrais (HPCs) funcionam como o cérebro, enquanto controladores zonais, posicionados estrategicamente no veículo, agem como nervos periféricos, gerenciando os sensores e atuadores locais. Tudo se conecta via Ethernet Automotiva, uma rede de alta velocidade que substitui quilômetros de fios pesados por uma infraestrutura de comunicação leve, flexível e programável por software.
É essa mudança radical que permite a magia, já que o mesmo hardware pode executar funções completamente diferentes dependendo do software que se carrega nele. A atualização não é uma correção, por exemplo; é uma reconfiguração fundamental da personalidade do veículo.
Um SDV desconectado é um paradoxo. A conectividade 5G, com sua baixa latência e alta velocidade, é a veia que liga o veículo à nuvem. Esta não é uma mera conexão para streaming de música. É uma simbiose. Aliás, chineses estão dominando esse tipo de tecnologia globalmente, inclusive com experiências de tecnologias de 5G Avançado e, até, 10G.
O veículo constantemente exala dados, como telemetria de desempenho, condições da estrada, status dos componentes, hábitos do condutor, entre outros. Na nuvem, estes dados são processados por inteligência artificial, que identifica padrões, prevê falhas (manutenção preditiva), otimiza rotas e até aprende com a frota inteira para melhorar o software de cada veículo individualmente. É um ciclo de feedback contínuo que torna o veículo mais inteligente a cada quilômetro rodado.
Este é o alicerce de novos modelos de negócio. Montadoras já projetam receitas de dezenas de bilhões até 2030 com software e serviços. O conceito de “Feature on Demand” (Recurso sob Demanda) surge, pois, o cliente não compra um pacote de luxo; ele assina o aquecimento dos bancos no inverno ou paga por um modo esportivo mais agressivo para uma viagem de fim de semana. O carro torna-se uma plataforma de monetização contínua, um serviço em constante evolução.
Sob esta ótica, podemos deduzir uma tendência que inflacionará o uso automotivo, pois se cada serviço ou benefício poderá ser contratado individualmente, a soma deles poderá representar um importante incremento orçamentário aos cofres da indústria e menos dinheiro no bolso do cidadão, que terá um cardápio de aparência irresistível de sistemas à sua disposição por diferentes preços.
Abrir o veículo para o mundo significa abri-lo para ameaças. Um carro conectado é um alvo em movimento. O perigo vai além do hacker individual que brinca com os limpadores de para-brisa; é o ataque coordenado a uma frota inteira, o sequestro de sistemas de frenagem ou direção, o roubo massivo de dados pessoais.
A regulação corre atrás. O marco WP.29 da ONU, com seus regulamentos R155 (cibersegurança) e R156 (atualizações OTA), força as montadoras a implementarem Sistemas de Gestão de Cibersegurança (CSMS) e Software Update Management Systems (SUMS). A norma ISO/SAE 21434 fornece diretrizes de engenharia.
A indústria recorre a listas como a OWASP Top 10 de vulnerabilidades, implementando testes rigorosos que simulam ataques a todos os componentes, da rede interna às portas de carga. A segurança não pode ser um acessório; deve ser “by design”, incorporada em cada camada do software e hardware, desde o boot seguro até a criptografia de todas as comunicações. A confiança do consumidor é o combustível mais valioso desta nova era, e um único incidente grave pode contaminar o poço para todos.
A revolução do SDV é também um terremoto geopolítico e industrial. Os fornecedores tradicionais (Tier 1s), outrora reis do hardware mecânico e dos ECUs dedicados, veem seu mundo desmoronar. Eles são forçados a uma transformação dolorosa, de fabricantes de componentes a integradores de software e parceiros de co-criação.
Como disse Joachim Fetzer, da Marelli: “Antes, havia um fornecedor Tier 1 e uma montadora. Este mundo está mudando… a montadora diz ‘não gostamos da palavra Tier 1, preferimos parceiro de co-criação’.” A relação vertical torna-se uma rede horizontal e colaborativa.
Surgem alianças estratégicas impensáveis há uma década. A joint venture entre a Daimler Truck e a Volvo Group, a Coretura AB, é um sintoma claro de que até concorrentes ferrenhos se unem para desenvolver a plataforma de software e o sistema operacional padrão que será a base de seus caminhões futuros. Ninguém quer — ou pode — fazer tudo sozinho.
Neste novo ecossistema, players de TI como Qualcomm, Google, AWS e NXP tornam-se peças centrais, fornecendo o silício, a nuvem e o conhecimento de escala que a indústria automotiva desconhece. A cultura do Vale do Silício, ágil e orientada a software, colide com a cultura conservadora e orientada a hardware que tão bem conhecemos na indústria do setor. É um choque de titãs, e o resultado moldará o futuro da mobilidade.
Por trás do techno-otimismo, espreitam questões sociais profundas. O SDV promete liberdade — a liberdade de personalizar, de atualizar, de ter um veículo sempre novo. Mas também impõe uma forma de controle e exclusão.
A visão de um “veículo como uma plataforma de inovação” é sedutora, um ecossistema aberto onde desenvolvedores criam aplicativos para seu veículo, como fazem para qualquer smartphone. Mas quem controla a loja de aplicativos? A montadora. Quem decide quais apps são seguros para rodar em uma tonelada de metal a 120 km/h? A montadora. O potencial para jardins murados é imenso, onde a montadora se torna a guardiã absoluta da experiência de direção, cobrando pedágio por cada nova função.
O modelo de assinatura, por sua vez, arrisca criar uma mobilidade de duas classes. Quem pode pagar terá carros mais seguros, eficientes e confortáveis. Quem não pode, ficará com a versão básica e estática. Recursos de segurança que salvam vidas, como frenagem de emergência autônoma, se tornarão itens de luxo por assinatura? Neste ponto, podemos entrar numa discussão sobre ética e a real preocupação com a segurança das pessoas.
Há também a questão dos dados. O SDV é uma máquina de vigilância sobre rodas, coletando uma riqueza inimaginável de informações sobre seus ocupantes e o ambiente. Quem é dono desses dados? Como são usados? Vendidos a seguradoras para personalizar prêmios? Entregues a governos? A privacidade torna-se uma mercadoria negociável na estrada digital.
O Veículo Definido por Software é inevitável. Ele representa a convergência final do físico e do digital, um ponto de inflexão na história do automóvel tão significativo quanto a invenção da linha de montagem por Henry Ford. Os desafios são hercúleos, pois passam por aspectos técnicos, culturais, de segurança e éticos.
A estrada à frente está aberta, mas não é lisa. Está repleta de curvas de incompatibilidade, buracos de vulnerabilidades cibernéticas e neblina de incerteza regulatória. Quem navegá-la com sucesso, equilibrando inovação com responsabilidade, lucro com ética, e personalização com inclusão, não apenas venderá carros, mas definirá os contornos de uma nova era de mobilidade. O rugido do motor pode estar silenciando, mas o sussurro do código está apenas começando a ser ouvido. E ele ecoa por toda a sociedade.
Narrativas que oferecem soluções definitivas costumam manter e intensificar a dependência do automóvel. Esta estratégia, longe de resolver os problemas de mobilidade, aprofunda as crises climática e social ao priorizar o consumo individual de alta tecnologia em detrimento de soluções coletivas, simples e já disponíveis. A suposta revolução dos VAs mascara a velha estratégia de “manter o consumidor insatisfeito”, vendendo a ideia de um futuro inatingível para justificar a insustentabilidade do presente.
Portanto, a verdadeira inovação não reside na automação da dependência ou qualquer coisa que o valha, mas em sua superação. A mobilidade viável é um direito social, e não um produto a ser comercializado. As soluções para os desafios urbanos e climáticos passam necessariamente pelo investimento em transporte público de qualidade, mobilidade ativa e cidades inclusivas, que são modelos comprovadamente mais eficientes, equitativos e sustentáveis. A dependência do veículo, seja ele autônomo ou convencional, é uma escolha política e de negócios, não um destino inevitável. Priorizar as necessidades humanas sobre os interesses do capital é o caminho urgente para construir cidades verdadeiramente libertadoras, onde a tecnologia sirva às pessoas, e não o contrário.