Uma imersão de duas semanas pelos centros nevrálgicos do desenvolvimento tecnológico e econômico chinês proporcionou ao economista Eduardo Moreira, fundador do Instituto Conhecimento Liberta (ICL), uma redefinição profunda dos paradigmas de inovação, planejamento e identidade corporativa.
A jornada, que percorreu as metrópoles de Xangai, Hangzhou, Shenzhen e Pequim, não foi um mero circuito turístico, mas uma investigação minuciosa em empresas de ponta, universidades de elite e centros de operações urbanas. O objetivo, segundo Moreira, era decifrar a filosofia por trás do salto quântico chinês. “Para mim mesmo, sabe? De poder aprender como é que os caras conseguiram fazer isso? Será que tem aqui algumas lições, será que tem uma filosofia por trás dessa história? E tem, sabe?“, refletiu o economista ao iniciar a apresentação de suas observações.
A partir de visitas a conglomerados como Alibaba, BYD, Star Vision (aeroespacial) e Deep Robotics, além de instituições como o Hospital da Universidade de Zhejiang e o centro de supercomputação da Tsinghua University, Moreira sintetizou oito lições fundamentais que, em sua análise, explicam a resiliência e a capacidade de inovação sistemática chinesa.
O roteiro, focado no eixo da inovação, abarcou um ecossistema urbano com PIB combinado de US$ 2,3 trilhões – que o colocaria como a sétima maior economia do mundo – e sede de 78 empresas da Fortune Global 500, um número superior ao somado de Alemanha, França e Reino Unido.
A primeira lição, segundo Moreira, é a convivência harmoniosa e deliberada entre passado e futuro. Em cada organização visitada, do hospital de cardiologia de última geração à empresa de satélites, havia um espaço dedicado à memória e às origens. O Alibaba mantém uma réplica fiel do modesto apartamento onde Jack Ma deu os primeiros passos; o museu da cidade de Shenzhen preserva uma exposição permanente sobre sua transformação, em quatro décadas, de uma vila de pescadores em uma megalópole tecnológica. “Tradição e inovação, passado e futuro devem caminhar juntos“, afirmou Moreira. “Porque o seu passado e o passado da sua empresa são a gênese da sua identidade. É nesse passado que tão guardadas as chaves para entender a sua identidade, como as lições para você não cometer os erros.” Ele vê nisso um antídoto para a cultura do apagamento: “A gente muitas vezes tem vergonha, tenta esconder o nosso passado… Eu tenho que entender que o Eduardo de hoje é o Eduardo que passou por tudo que ele passou“.
Em contraste com a tirania dos resultados trimestrais que domina o Ocidente, Moreira identificou a disciplina do planejamento de longo prazo como um pilar estruturante. “Quem vive com a cabeça no curto prazo, morre no médio prazo e não colhe os frutos do longo prazo“, analisou. Ele criticou a miopia que vê no Brasil, onde políticas e negócios são frequentemente reféns de ciclos eleitorais ou da pressão por dividendos imediatos. Na China, o alinhamento entre os planos quinquenais do Estado e a estratégia das empresas cria uma sinergia poderosa. “Planejamento é a chave. E aí, uma empresa deve saber com muita clareza onde ela quer chegar e como quer alcançar os seus objetivos. Não se trata somente de planejamento financeiro. Significa planejar sua história, o seu caminho, o seu crescimento.”
A terceira lição é a assimilação radical da Inteligência Artificial, que deixa de ser uma ferramenta setorial para se tornar o cerne da operação. “As empresas, quase todas elas, estão se transformando em empresas de IA (inteligência artificial) com aplicações dos seus setores“, observou Moreira. Ele destacou que, diferentemente do uso comum no Brasil, focado na “última milha” (como atendimento ao cliente ou criação de conteúdo), na China a IA está embutida (embedded) em todo o processo, desde o desenho do hardware até a otimização dos sistemas, criando um ciclo de retroalimentação. “Lá as grandes empresas, quase todas, cada uma tem a sua própria IA. A IA, ela tá embedada, ela tá integrada com tudo aquilo que a empresa faz.” Para ele, resistir a essa adoção integral é se condenar ao atraso.
Moreira ficou impressionado com a valorização institucional da marca, que vai muito além do logotipo ou do marketing. Ele descobriu a figura do Chief Brand Officer (CBO), um cargo de alto escalão e prestígio, responsável por gerir a identidade, a mensagem e a forma como a empresa deseja ser lembrada. “A marca da empresa requer investimento, dedicação contínua e divulgação. Ela deve carregar a identidade, a mensagem e a forma como a empresa quer ser lembrada pelas pessoas.” Ele citou o caso da BYD, que desenvolveu carros-conceito de vanguarda não necessariamente para venda em massa, mas com o objetivo estratégico de reposicionar sua marca, tradicionalmente associada a veículos para frotas, como uma empresa de design e inovação de ponta.
A pergunta “qual o papel da sua empresa para a sociedade?” é, segundo Moreira, respondida com clareza e centralidade por todas as organizações que visitou. Ele vinculou essa clareza de propósito à energia inovadora. “O que faz com que uma empresa tenha sempre essa energia criativa, impulsionadora, inovadora, é a noção clara de como a atividade que ela desenvolve torna a vida das pessoas melhor.” Esse propósito é reforçado pela presença, nos conselhos das grandes empresas, de representantes do governo, cuja função principal, em sua interpretação, é assegurar que a empresa cumpra seu papel social. “Se você tiver transformado a sua empresa numa coisa que é só para dar lucro para o acionista, ‘é o seguinte, irmão, esquece.’ Não vai ser.”
Derivado do propósito, surge a sexta lição: a construção da comunidade como ativo principal. Moreira propõe uma inversão de perspectiva: “A sua principal atividade não é vender o seu produto para os seus clientes. É se relacionar com os seus clientes através do seu produto.” Ou seja, o produto ou serviço é o meio, e não o fim, da construção de um vínculo duradouro. “No final das contas, toda empresa é relacionamento“, afirmou, enfatizando que o valor final não está na transação, mas no laço criado, que por sua vez exige a constante superação na qualidade do que é oferecido.
No Alibaba, Moreira se deparou com um sistema formalizado de reconhecimento da jornada do funcionário, materializado em placas e presentes simbólicos. Após um ano, a mensagem é “A gente acredita porque a gente ama“, reconhecendo a fase da “lua de mel”. Aos três anos, “a gente se compromete com a empresa, porque conhecemos quem ela é“, marcando a superação das dificuldades e a internalização da cultura. Aos cinco anos, “a gente não tem medo de admitir as nossas fraquezas“, estágio em que o funcionário se torna um embaixador dos valores da empresa para o público externo. “Os trabalhadores de uma empresa são a empresa. Se você quer cuidar do futuro e do sucesso da sua empresa, você tem que cuidar do futuro e do sucesso das pessoas que trabalham na sua empresa.”
Por fim, a lição da centralidade dos dados. “Ciência se faz com dados. Inteligência artificial precisa de dados“, declarou Moreira, defendendo uma abordagem rigorosa e ética para a coleta e análise de informações relevantes e complementares. Ele contrastou isso com o que chamou de “ilusões” de atalhos para o sucesso, enfatizando que a melhoria contínua de processos, produtos e entendimento do cliente só é possível através da mineração de dados precisa. “Para melhorar os processos da sua empresa, compreender a demanda dos seus clientes, chegar a formatação ideal do seu produto, você tem que buscar dados. Não pode ser pela intuição.”
Ao final da explanação, Eduardo Moreira anunciou que o analista e pesquisador Felipe Durante, residente na China há nove anos, integrará o ICL como seu braço no país, responsável por aprofundar parcerias e colaborações, além de produzir um curso sobre a história moderna chinesa. A viagem, segundo Moreira, foi um “divisor de águas” que não apenas expandiu sua visão, mas também redefiniu a trajetória de atuação internacional do instituto. “A melhor maneira de se proteger do futuro é a gente inventar ele, a gente construir esse futuro“, concluiu, sintetizando capacidade de agir e planejamento que, segundo suas observações, pulsa no coração do modelo chinês.
