Começo este artigo com um desabafo afirmativo: catracas são elementos absolutamente odiosos na mobilidade.
A pandemia de COVID-19 funcionou como um catalisador de crises estruturais no transporte público brasileiro, expondo a fragilidade de um modelo historicamente dependente da tarifa como fonte quase exclusiva de financiamento. De acordo com dados da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), a demanda por ônibus urbanos sofreu uma contração sem precedentes entre 2020 e 2021, variando de 40% a 60% nas principais metrópoles, com algumas cidades registrando quedas superiores a 80% nos meses mais críticos. Esse colapso operacional, somado ao aumento dos custos de combustível e manutenção, reacendeu com urgência o debate sobre alternativas de financiamento e o reconhecimento do transporte como direito social fundamental.
Nesse contexto, a Tarifa Zero emergiu não apenas como proposta teórica, mas como política efetivamente implementada em escala crescente. O número de municípios brasileiros com sistemas de gratuidade total ou parcial saltou de menos de 20 em 2014 para 154 em 2025, segundo levantamento da NTU atualizado em maio deste ano. Esse crescimento, contudo, não é linear nem homogêneo: enquanto cidades pequenas e médias representam 79% das implementações, as metrópoles enfrentam desafios operacionais e financeiros que demandam análise técnica aprofundada.
O município de Caucaia (CE), na região metropolitana de Fortaleza, oferece um dos casos mais emblemáticos de implementação bem-sucedida. Após adotar a Tarifa Zero em 2021, a demanda mensal por transporte público expandiu-se de 510 mil para 2,4 milhões de passageiros em 18 meses, um incremento de 371% que exigiu reestruturação completa da malha viária. O modelo de remuneração por quilômetro rodado (R$ 5,20/km em 2024) permitiu otimizar linhas subutilizadas, contendo o aumento dos subsídios em 30% ante o crescimento da demanda.
Os efeitos indiretos na economia local foram mensuráveis e, de acordo com levantamento do Sebrae-CE, houve aumento de 25% no faturamento médio do comércio de bairro, com picos de 40% em áreas periféricas anteriormente desconectadas do centro. Para Maria Lúcia Alencar, economista da Universidade Federal do Ceará, “a gratuidade funcionou como política anticíclica, injetando liquidez em setores populares que antes destinavam até 15% da renda familiar ao transporte“.
Já Maricá (RJ) apresenta particularidades que desafiam a replicabilidade imediata. A cidade, que implementou a Tarifa Zero em 2019, financia o sistema através de royalties do petróleo, recurso que cobriu 87% dos R$ 87,6 milhões anuais do sistema em 2024. A gratuidade gerou economia média de 20% na renda familiar, mas também provocou fluxos migratórios internos: a população cresceu 9,7% entre 2019 e 2023, contra 3,2% na média estadual, pressionando serviços públicos.
O caso evidencia dilemas regionais. Como explica o urbanista Raul Cordero (IPPUR/UFRJ), “políticas isoladas em cidades ricas de regiões metropolitanas criam efeitos espaciais assimétricos, atraindo população sem capacidade fiscal equivalente“. Dados da Pesquisa Origem-Destino da Região Metropolitana do Rio mostram que 18% dos usuários do sistema de Maricá em 2024 residiam em municípios vizinhos, o que repercutiu na diminuição da arrecadação tarifária em Niterói e São Gonçalo em aproximadamente R$ 12 milhões/ano.
Enquanto em cidades com menos de 100 mil habitantes a Tarifa Zero consome em média 3% do orçamento municipal, nas grandes cidades os números são exponenciais. Um estudo encomendado pela Prefeitura de São Paulo em 2023 estimou custo anual entre R$ 15,9 bilhões (cenário conservador) e R$ 21,7 bilhões (universalização com expansão de frota), o que representava de 18% a 25% da receita corrente líquida da cidade. O transporte gratuito aos domingos, implementado em 2024 na capital paulista, custou R$ 283 milhões no primeiro ano, com aumento de 22% na demanda.
A análise comparativa internacional revela modelos distintos de financiamento extratarifário aplicáveis ao contexto brasileiro:
- Taxação de combustíveis fósseis (Paris, França): Alíquota adicional de €0,10/litro gera €120 milhões/ano.
- Pedágio urbano dinâmico (Londres, Reino Unido): Cobrança por quilômetro rodado em zonas centrais.
- Captura de valor imobiliário (Hong Kong, China): Licenciamento condicionado a investimentos em infraestrutura.
- Contribuição empresarial (Zurique, Suíça): Imposto progressivo sobre folha de pagamento.
No Brasil, experiências locais sugerem caminhos híbridos. Vargem Grande Paulista (SP) combina taxa de estacionamento rotativo (R$ 2,3 milhões/ano); publicidade em veículos (R$ 1,1 milhão); e multas de trânsito direcionadas (28% da arrecadação).
Já o Sistema Único de Mobilidade (SUM), proposto por coalizão de ONGs, prevê fundo nacional alimentado por 1% sobre transações financeiras (R$ 19 bi/ano); 10% dos royalties do petróleo (R$ 4,7 bi em 2024); além da reoneração de serviços digitais (estimado em R$ 3,2 bi).
Uma Pesquisa da Confederação Nacional do Transporte (CNT) em 48 cidades com Tarifa Zero revela paradoxos, pois enquanto 58% dos usuários aprovam a gratuidade, 36,8% relatam piora no conforto e 29,4% no tempo de viagem. Em Palmas (TO), a implementação sem expansão da frota em 2022 elevou a ocupação média para 122% da capacidade nos horários de pico, sendo este um cenário que se repete em 41% dos municípios pesquisados.
O engenheiro de transportes Ariovaldo Franco (IPT) alerta: “Subsidiar a operação sem investir em qualidade cria armadilhas: o passageiro volta para o carro ou moto, mesmo com tarifa zero“. Dados do IBGE mostram que, entre 2019 e 2023, o tempo médio de deslocamento nas regiões metropolitanas aumentou 14%, com piora mais acentuada (19%) justamente nas cidades que adotaram gratuidade sem ampliação de infraestrutura.
Recomendações para uma Política Sustentável
- Pode-se adotar um Pacto Federativo de Mobilidade por meio da criação de fundo nacional com contrapartidas estaduais e municipais, nos moldes do SUS, garantindo fontes estáveis e progressivas.
- Uma regulação assimétrica em que se estabeleça padrões mínimos de qualidade (frota/km², intervalos máximos) como condição para repasses.
- Governança de Dados via implantação do Sistema Nacional de Informações sobre Mobilidade (SNIM), com métricas padronizadas e auditáveis.
- A Integração Modal combinada com políticas de uso do solo e incentivos a modais ativos, reduzindo a pressão sobre o sistema rodoviário.
A Tarifa Zero não é fim em si mesma, mas instrumento para resgatar a função social do transporte público. Seu êxito depende da superação do modelo atual, que é fragmentado, opaco e financeiramente insustentável. Como demonstram experiências internacionais, a gratuidade universal só floresce em sistemas com financiamento diversificado, gestão profissionalizada e planejamento integrado.
O momento exige coragem para reformas estruturais. Com 30% da população brasileira gastando até 40% da renda com transporte (IPEA, 2023), a inação tem custo social inaceitável. A escolha não é entre tarifa zero ou transporte eficiente, mas entre mobilidade como direito ou privilégio. Não há margem para dualidade, ou se planeja e se investe de forma correta em mobilidade urbana ou os meios de transporte permanecerão sendo fatores de segregação social somado a degradação das formas de locomoção.
A mobilidade gratuita é mais que uma política pública. É um instrumento de emancipação. Garantir transporte livre é assegurar que a cidade pertença a quem nela vive e trabalha. Transporte livre para um povo livre!