Num contexto de turbulência política comercial e de tarifas norte-americanas elevadas a patamares não vistos desde a década de 1930, o comércio internacional surpreende ao exibir notável robustez. Esta é a principal conclusão de uma atualização especial do DHL Global Connectedness Tracker, relatório lançado em conjunto pela DHL e pela Stern School of Business da Universidade de Nova York (NYU Stern), que fornece a primeira avaliação sistemática sobre como o comércio e os investimentos corporativos reagiram às mudanças na política comercial dos EUA no segundo mandato do presidente Trump.
Baseando-se em mais de 20 milhões de pontos de dados de mais de 25 fontes, o relatório revela que, no primeiro semestre de 2025, o comércio global cresceu em um ritmo mais acelerado do que em qualquer outro semestre desde 2010, com exceção do período de recuperação pós-pandemia. Apesar dos ventos contrários, a projeção para o período entre 2025 e 2029 indica uma taxa de crescimento anualizada de 2,5% nos volumes de comércio, praticamente igualando o ritmo observado na década anterior.
De acordo com John Pearson, CEO da DHL Express, os dados destacam a força duradoura do comércio global. “As barreiras comerciais não atendem aos melhores interesses do mundo. Mas nunca devemos subestimar a criatividade dos compradores e vendedores de todo o mundo que desejam fazer negócios uns com os outros“, afirmou Pearson.
O estudo detalha que os aumentos tarifários implementados pelos EUA de fato exercem um efeito redutor sobre o crescimento do comércio, mas não são capazes de interrompê-lo. A previsão de crescimento para o quinquênio 2025-2029, que era de 3,1% ao ano antes da onda tarifária (em janeiro de 2025), foi revisada para baixo, estabilizando-se em 2,5%. O impacto, contudo, não é uniforme. A região da América do Norte sofreu a mais severa revisão, com as projeções caindo de 2,7% para apenas 1,5% entre janeiro e setembro de 2025. Em contrapartida, as previsões para a América do Sul e Central e para o Oriente Médio e Norte da África foram revisadas para cima, impulsionadas por aumentos tarifários relativamente menores enfrentados por esses países e, no caso do Oriente Médio, pelo esperado benefício do aumento da produção e exportação de petróleo.
Um dos fenômenos observados no primeiro semestre de 2025 foi um significativo aumento nas importações dos EUA, impulsionado por compradores que anteciparam embarques para escapar dos futuros aumentos de tarifas. A China, por sua vez, conseguiu compensar integralmente o declínio em suas exportações para os EUA com o aumento das remessas para a região da ASEAN (Associação das Nações do Sudeste Asiático), além de ter expandido substancialmente suas vendas para a África, União Europeia e outros mercados. Notavelmente, mesmo após a onda de antecipação de cargas para os EUA, os volumes globais de comércio permaneceram superiores aos níveis do ano anterior.
No front dos investimentos corporativos, os dados do primeiro semestre de 2025 foram mistos, mas não indicam uma retração generalizada da globalização. Não foi identificado um padrão de empresas redirecionando investimentos de mercados estrangeiros para os domésticos. A participação transfronteiriça em negócios de Fusões e Aquisições (M&A), por exemplo, manteve-se praticamente inalterada. A incerteza, entretanto, parece ter suprimido alguns investimentos internacionais de menor porte e novos projetos no segundo trimestre.
Segundo o Prof. Steven A. Altman, diretor da DHL Initiative on Globalization da NYU Stern, as tendências não corroboram a visão de um retrocesso na globalização. “Embora seja um erro ignorar as atuais ameaças políticas à globalização, as empresas, em geral, não estão se afastando dos mercados internacionais. O comércio está percorrendo a maior distância média já registrada, e os conflitos geopolíticos remodelaram apenas uma pequena fração da atividade internacional do mundo“, explicou Altman.
Contrariando narrativas comuns, o relatório também evidencia que não está ocorrendo uma grande divisão da economia mundial em blocos geopolíticos rivais. Embora os laços diretos entre EUA e China continuem a se enfraquecer e a Rússia esteja largamente desconectada das economias alinhadas ao Ocidente, o mundo como um todo não reorientou substancialmente seus fluxos comerciais conforme alinhamentos geopolíticos – pelo menos até o momento.
Ademais, o comércio não está se tornando mais regional. Pelo contrário, a distância média percorrida pelas mercadorias comercializadas atingiu um recorde histórico de aproximadamente 5.000 quilômetros no primeiro semestre de 2025. A participação do comércio intra-regional entre as principais regiões do mundo caiu para um mínimo histórico de 51%. O investimento estrangeiro direto em novas instalações também se tornou menos regional, enquanto a atividade internacional de fusões e aquisições manteve um nível estável de regionalização.
Por fim, ao medir o fenômeno mais amplo da globalização com base nos fluxos de comércio, capital, informações e pessoas, o relatório constata que o nível global de conectividade permanece em 25%, praticamente inalterado em relação ao pico de 2022, em uma escala que vai de 0% (nenhum fluxo internacional) a 100% (fronteiras irrelevantes). Os dados, portanto, pintam um quadro de um sistema globalizado que, apesar das pressões e remodelações pontuais, mantém sua integração em níveis recordes.
Agro brasileiro
Em recente análise do historiador Ian Neves, por meio de seu canal no YouTube, em meio à escalada das tensões comerciais entre Estados Unidos e China, o agronegócio brasileiro consolida-se como um grande beneficiário do conflito, registrando volumes históricos de exportação. A imposição de tarifas recíprocas pelas duas maiores economias do mundo reconfigurou os fluxos globais de commodities, com a soja no centro do redirecionamento. Em retaliação às medidas protecionistas norte-americanas, a China aplicou uma tarifa de 20% sobre a soja dos Estados Unidos, resultando na paralisação completa das compras chinesas do grão produzido no país norte-americano. Até setembro de 2025, as exportações estadunidenses de soja para o mercado chinês permaneciam zeradas.
Este vácuo foi rapidamente preenchido pelo Brasil, que atingiu a marca de 10 milhões de toneladas de soja exportadas para a China mensalmente, um recorde sem precedentes. A dependência chinesa do complexo soja para ração animal, fundamental para a criação de suínos, transformou o Brasil em fornecedor estratégico. Como contrapartida ao colapso de sua própria agricultura, o governo estadunidense anunciou um pacote de auxílio de US$ 14 bilhões aos produtores rurais afetados, uma medida que foi criticada por especialistas como uma “lógica circular” de intervenção estatal, na qual o Estado precisa remediar os prejuízos causados por suas próprias políticas tarifárias.
Enquanto isso, a produção agrícola brasileira atinge novos patamares. O país alcançou a cifra de 350 milhões de toneladas de grãos, consolidando-se como celeiro global ao liderar as exportações mundiais de sete produtos: soja (56% do total exportado), milho (31%), café (27%), açúcar (44%), suco de laranja (76%), carne bovina (24%) e carne de frango (33%). Este crescimento, no entanto, ocorre em paralelo a um processo acelerado de desindustrialização. Dados mostram que a participação da indústria de transformação no PIB brasileiro recuou de 18% em 1990 para 12% em 2019, tendência que se agravou durante o governo Bolsonaro, quando o setor registrou queda em três dos quatro anos de mandato.
O expansionismo do agronegócio gera impactos ambientais profundos. Estudos apontam que três em cada quatro hectares convertidos para agricultura no Brasil são ocupados por lavouras de soja. No Cerrado, a monocultura destruiu mais de 30% da vegetação nativa entre 2004 e 2017, enquanto incêndios consumiram 88 milhões de hectares em 39 anos – área equivalente ao território do Chile. Na Amazônia Legal, a soja já ocupa 444 mil hectares, pressionando a fronteira agrícola sobre áreas de preservação. Comunidades indígenas, como a Guyraroká no Mato Grosso do Sul, reportam contaminação de fontes de água por agrotóxicos utilizados nas lavouras vizinhas.
Este modelo de desenvolvimento baseado na exportação de commodities primárias remonta aos anos 2000, quando o boom de demanda chinesa por matérias-primas impulsionou o superávit comercial brasileiro. O período permitiu o acúmulo de reservas internacionais e a estabilização monetária, além de financiar políticas de distribuição de renda durante os governos Lula. Contudo, especialistas alertam que o país aprofundou uma “especialização retrógrada” da economia, onde se verifica a “reprimarização” da pauta exportadora e o esvaziamento do parque industrial.
A vulnerabilidade desta estrutura ficou evidente na dependência brasileira de insumos importados, como fertilizantes, setor no qual o agronegócio não logrou desenvolver uma cadeia produtiva nacional integrada. Analistas caracterizam esta condição como um caso de “doença holandesa”, onde a valorização do setor primário inibe o desenvolvimento industrial, tornando a economia vulnerável a flutuações nos preços internacionais de commodities.
Em 2025, o governo federal apresentou um plano de R$ 300 bilhões em financiamentos e subsídios para reindustrialização, com foco em setores estratégicos como a indústria de medicamentos. Dados preliminares de deste ano já apontam recuperação moderada do setor industrial, com crescimento em 17 dos 18 locais pesquisados e faturamento 4,7% maior no primeiro trimestre de 2025. A reversão do processo de reprimarização, no entanto, esbarra na estrutura de poder representada pela bancada ruralista, que conta com 324 deputados e 50 senadores no Congresso Nacional, garantindo a continuidade de um modelo de desenvolvimento centrado na exportação de recursos naturais.