O fenômeno da urbanização planetária constitui a mais profunda reconfiguração antropológica, social e econômica dos últimos dois séculos. De um mundo predominantemente agrário, onde, em 1900, apenas 15% da população mundial residia em aglomerações urbanas, projetamos um horizonte, para 2030, no qual 60% da humanidade estará concentrada em tecidos urbanos. Este êxodo, vertiginoso e desordenado em vastas regiões do planeta, assume contornos particularmente agudos no Sul Global, onde nações como a Nigéria, a Índia e o Brasil – este último com uma taxa de urbanização que deverá ascender a 91% até 2050 – enfrentam o duplo desafio da escala e da carência de infraestrutura. Neste panorama, a China emerge não apenas como o epicentro quantitativo deste processo – prevendo-se que, em conjunto com a Índia e a Nigéria, represente 40% dos novos habitantes urbanos até 2050 –, mas, sobretudo, como um laboratório singular de planejamento, intervenção estatal e inovação tecnológica aplicada à governação das cidades.
Este artigo toma como base, sobretudo, o excelente livro de Fernando Marcelino Pereira, autor de “A Revolução das Cidades Inteligentes na China – Perspectivas do Desenvolvimento Urbano no Século XXI”, de 2024, publicado pela Appris Editora.
A construção de cidades inteligentes se tornou, assim, um imperativo global, uma resposta às disfunções da metrópole tradicional. Contudo, longe de ser um conceito engessado, a “cidade inteligente” se desdobra em muitas definições, desde uma visão restrita, centrada na eficiência da infraestrutura através da Internet das Coisas (IoT) e da computação em nuvem, até uma concepção holística que abrange economia, governança, meio ambiente, logística, energia, transporte, turismo, serviços médicos e planejamento, todos qualificados pelo adjetivo “inteligente”. A questão central que se coloca não é, portanto, se as cidades devem se tornar inteligentes, mas “como?” e “para quê”? E é na resposta a estas duas indagações que o modelo chinês se distingue, fundindo a arquitetura de um Estado planejador de longo prazo com a capacitação de um setor tecnológico nacional dinâmico, tudo enquadrado por uma visão que progressivamente desloca o eixo da inteligência tecnológica para a inteligência institucional e o bem-estar humano.
A singularidade do processo de urbanização inteligente na China é indissociável da sua estrutura de governança. Ao contrário de modelos federativos, como o do Brasil, onde os municípios detêm autonomia para aprovar os seus planos diretores, na China os planos – o xiangxi guihua (Plano Detalhado) e o zongti guihua (Plano Geral) – são sempre aprovados pela instância superior, regional, assegurando uma coerência estratégica nacional. Esta verticalidade não é sinônimo de rigidez, mas de continuidade sistêmica. A cultura do planejamento de longo prazo, materializada nos Planos Quinquenais, está profundamente internalizada na rotina de todos os órgãos de governo. O 12º Plano Quinquenal (2011-2015), por exemplo, anunciou a intenção de desenvolver “cidades digitais“, lançando as sementes para um movimento que seria institucionalizado como estratégia nacional a partir de 2012, com políticas estruturantes do governo central em 2014 e 2017.
A liderança do Partido Comunista da China (PCC) confere a este processo uma capacidade ímpar de unificar pensamentos e ações. A sua capilaridade social e capacidade organizacional traduzem-se numa alta eficiência na planificação e execução. Esta eficácia é visível na transição entre fases do desenvolvimento das cidades inteligentes. Por exemplo, da Fase 1.0, centrada na digitalização da informação e integração de dados, passou-se para a Fase 2.0, caracterizada pela quebra de barreiras de dados entre departamentos e pela construção do Modelo de Informação da Cidade (CIM), que integra planeamento, construção, gestão e operação. Atualmente, avança-se para a Fase 3.0, ou “Cidade Inteligente de Novo Tipo”, que representa um regresso ao propósito fundamental de melhorar a vida das pessoas, enfatizando a participação pública na governança urbana e priorizando uma abordagem centrada no ser humano. Esta evolução não é caótica ou deixada ao sabor do mercado; é orquestrada, refletindo uma visão estratégica que atualiza e aprofunda os objetivos nacionais.
A garantia da estabilidade política é, assim, o sustentáculo de um projeto de longo prazo. Enquanto outras nações veem as suas políticas urbanas oscilarem com ciclos eleitorais, o sistema político centralizado chinês garante a continuidade das ações, onde novos planos dão sequência lógica aos anteriores. Esta previsibilidade é um ativo incalculável para o investimento em infraestruturas complexas e de retorno a longo prazo, como os sistemas de transporte de alta velocidade ou as redes de sensores urbanos.
A teoria do planejamento ganha materialidade em projetos concretos que redefinem a experiência urbana. Estes casos demonstram como a integração entre diretrizes estatais, tecnologia doméstica e foco na eficiência produz resultados tangíveis.
Exemplos contundentes
Pequim
A capital como vitrine da governança digital: A aceleração de Pequim como cidade inteligente manifesta-se na simplificação radical dos serviços públicos. O Cartão do Serviço Social do Cidadão, um cartão virtual, integra informações de identidade, segurança social, condições de saúde e educação, funcionando como um “alter ego” digital do residente. Mais significativa ainda é a política de “Serviços Governamentais + Blockchain“. Ao digitalizar certificados, licenças e outros serviços, e incorporar a tecnologia de blockchain, os departamentos governamentais não só reduzem cargas de trabalho e poupam recursos, como criam sinergias intragovernamentais profundas, permitindo a partilha de dados segura entre múltiplas entidades. Isto elimina a duplicação de processos, os erros humanos e os atrasos dispendiosos do método tradicional de arquivamento, promovendo um ambiente de negócios mais ágil. A segurança, outro pilar, é exemplificada no sistema de metrô, onde cada estação possui um sistema de despacho de bagagens comparável a um aeroporto, e as autoridades afirmam poder localizar qualquer pessoa que cause problemas no sistema de transportes em 15 minutos.
Shenzhen
A eletrificação total e a fronteira autônoma: Shenzhen se posiciona na vanguarda da mobilidade sustentável. Detém a maior frota de ônibus elétricos do planeta, com 16.359 unidades (dados de 2024), abastecidas por 26 estações de recarga conectadas a subestações transformadoras exclusivas para evitar congestionamento na rede. Cada ônibus, com uma autonomia de 200 km, percorre em média 174 km por dia, sendo recarregado nas garagens nos intervalos de operação. Esta transição permitiu uma redução significativa na poluição atmosférica e sonora. Mas a ambição de Shenzhen não para aí. Foi a primeira cidade chinesa a regulamentar o uso de carros sem motorista, a dispor de cobertura 5G total no seu território (com 50 mil estações-base) e planeja, para os próximos anos, o lançamento de 100 táxis e 100 ônibus autônomos, atualmente em fase de testes.
Guangzhou
O BRT como sistema de capacidade metroviária: O Bus Rapid Transit (BRT) de Guangzhou, inaugurado em 2010, é um estudo de caso em inovação de baixo custo e alta eficiência. É o único sistema BRT da Ásia a atingir níveis de substituição do metrô, transportando uma média de 800 mil passageiros por dia, com picos de mais de 25 mil passageiros por hora num único sentido. A sua inovação revolucionária foi pioneira no modelo de “serviço direto” de alta capacidade: os ônibus BRT entram e saem do corredor sem a necessidade de os passageiros efetuarem transbordos, um modelo operacional que está a ter impacto mundial. O projeto integrou ainda instalações de alta qualidade para bicicletas, incluindo um sistema de partilha e ciclovias segregadas, resultando no duplicar do volume de ciclistas nos horários de pico entre 2009 e 2014.
Chongqing
Biometria Fluida: A experiência do usuário é simplificada por meio de biometria. Em Chongqing, os passageiros do metrô já não necessitam de cartões ou smartphones; os portões se abrem após uma rápida varredura facial, num processo que demora menos de 2 segundos. Esta integração perfeita se estende à informação em tempo real, como as telas que mostram a lotação de cada vagão, permitindo uma escolha voltada ao conforto do passageiro e contribuindo para uma distribuição mais eficiente dos usuários.
Ecossistema tecnológico
Diferente de muitos países que dependem de soluções de corporações multinacionais como IBM, Siemens ou Cisco, a China cultivou o seu próprio ecossistema de gigantes tecnológicos. Empresas como Baidu, Huawei, Alibaba e Tencent tornaram-se as principais intervenientes no desenvolvimento de cidades inteligentes, criando produtos que, embora customizados para cidades específicas, possuem um potencial de exportação considerável.
Huawei
A Espinha Dorsal da Conectividade: A Huawei tem sido fundamental para a expansão global das tecnologias IoT e da rede 5G, ambas infraestruturas críticas para as cidades inteligentes. A sua atuação vai além das telecomunicações, incluindo a modernização de infraestruturas como o Aeroporto Internacional Bao’an de Shenzhen, onde se registaram reduções significativas em filas de espera e tempos de embarque, e a implementação de sistemas inteligentes de semáforos e controle de tráfego que otimizam os fluxos viários.
Baidu e Didi
A Revolução do Transporte Inteligente: O projeto Apollo da Baidu visa desenvolver infraestrutura de transporte digital, utilizando tecnologias C-V2X (Cellular Vehicle-to-Everything) para integrar veículos inteligentes na rede de tráfego urbana, incluindo sinalização, estacionamento e ônibus inteligentes. Paralelamente, a Didi Chuxing, conhecida pela sua plataforma de compartilhamento de viagens, desenvolveu o “Didi Transportation Brain“, um sistema que aproveita Big Data e IA para melhorar o tempo de viagem dos passageiros, e está expandindo uma frota de veículos autônomos (robotáxis) que funcionam em sinergia com este “cérebro”, já com projetos-piloto em Xangai, Yangquan e Hefei.
Tencent
A concepção da cidade do futuro: A Tencent, em parceria com o escritório de arquitetura NBBJ, anunciou a criação da “Net City“, um projeto ambicioso que prioriza uma infraestrutura verde, orientada para as pessoas e com uma rede subterrânea de veículos autônomos que será construída perto de Shenzhen para abrigar 80.000 pessoas, representando uma visão integrada de urbanismo sustentável e tecnologia.
ART (Autonomous Rail Rapid Transit)
Talvez uma das inovações mais emblemáticas da engenharia de transportes chinesa seja o ART, ou “Bonde Sem Trilhos”. Desenvolvido pela CRRC, o maior fabricante de material rodante do mundo, o ART sintetiza as melhores características do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) e do BRT, eliminando algumas das suas maiores desvantagens. Trata-se de um veículo com pneus que, no entanto, replica a experiência de um sistema segredado de mobilidade, graças a um sistema de orientação ótica autônomo, eixos duplos, sistemas hidráulicos e pneus especiais.
O veículo padrão consiste em três vagões com capacidade para 300 pessoas, podendo ser expandido para cinco vagões e 500 passageiros. É propulsionado eletricamente por baterias que são recarregadas nas estações em meros 30 segundos ou no terminal da linha em 10 minutos. Alcança velocidades de 70 km/h e oferece uma qualidade de viagem suave, sem os solavancos e vibrações característicos dos ônibus convencionais. A sua implantação é radicalmente mais rápida e barata, pois enquanto 20 km de trilhos de um VLT podem custar cerca de 130 milhões de dólares por quilômetro e demorar cinco anos para ser construído, o ART pode ser implantado por apenas 10 milhões de dólares por quilômetro, podendo percorrer estradas existentes sem a necessidade de trilhos ou cabos aéreos onerosos. Pode ser colocado durante um fim de semana.
A primeira operação comercial se deu em Zhuzhou em 2018, e a linha mais longa, a Linha T4 em Yibin, com 47 km, iniciou operações de teste em 2023. O sucesso do conceito já atrai interesse internacional, com a primeira geração a ser testada na Malásia e na Austrália. O ART consolida as vantagens do BRT (custo e velocidade de implantação) e do VLT (capacidade e conforto) num único sistema, representando um salto quântico no planejamento da mobilidade urbana.
Automação
A aplicação de robôs se tornou uma tendência inevitável na operação das cidades chinesas. Para além dos 32 quilômetros de linhas de metrô totalmente automatizadas em 16 cidades (dados de 2022), a robótica se expande para outras frentes. Na logística, armazéns da JD.com utilizam robôs para a coleta e transporte de pacotes, aumentando a eficiência em cinco vezes e atingindo uma precisão de 99,9% na classificação. Robôs de saneamento não tripulados, operando em redes 5G, são capazes de detectar, rastrear e recolher lixo automaticamente, varrendo e lavando ruas. Robôs da polícia de trânsito, equipados com sensores e câmaras, monitorizam condições de tráfego em tempo real e podem interagir com veículos estacionados, movendo-os para otimizar o espaço e o fluxo. Esta automação onipresente visa libertar capacidades humanas para tarefas de maior valor intelectual e aumentar a resiliência operacional dos serviços urbanos.
Cidades-Esponja e Ecocidades
A inteligência urbana na China não se restringe ao domínio digital; estende-se à gestão dos recursos naturais e à adaptação às alterações climáticas. O conceito de “cidades-esponja”, popularizado pelo arquiteto paisagista Kongjian Yu, tornou-se política de Estado. As cidades são obrigadas a manter 30% do seu território como espaço verde e outros 30% como espaço comunitário, promovendo a infiltração natural das águas pluviais e mitigando cheias. Kongjian Yu morreu em 23 de setembro de 2025 num acidente aéreo em Aquidauana, no Pantanal (MS), junto com o documentarista Luiz Fernando Feres da Cunha Ferraz, o cineasta Rubens Crispim Júnior e o piloto Marcelo Pereira de Barros, em uma aeronave Cessna 175, fabricada em 1958.
Projetos ainda mais ambiciosos são as ecocidades, concebidas como modelos de desenvolvimento sustentável para enfrentar a degradação ambiental e as restrições de recursos. O envolvimento do governo central diferencia a abordagem chinesa: enquanto projetos globais são tipicamente fragmentados e locais, o programa chinês é nacional, resultando no maior programa de desenvolvimento de cidades ecológicas do mundo. Estes projetos, muitas vezes construídos a partir do zero, priorizam o uso de energias renováveis (solar, eólica e bioenergia) e integram a sustentabilidade em todo o seu planejamento.
O expoente máximo desta visão é a Nova Área de Xiong’an, uma nova cidade planejada para descongestionar Pequim. Xiong’an é descrita como três cidades em uma, incluindo a “cidade subterrânea“, composta por corredores de serviços públicos que alojam redes de água, eletricidade e logística automatizada; a “cidade de superfície“, rigorosamente ecológica e centrada nas pessoas; e a “cidade nuvem“, o seu gémeo digital. Esta réplica virtual, construída em paralelo com a cidade real, permitirá uma navegação de tráfego em tempo real ultra eficiente, a manutenção preditiva de infraestruturas e a gestão algorítmica de sistemas urbanos, representando a materialização da Cidade Inteligente 3.0.
O Direito
A ascensão da cidade inteligente não é um desenvolvimento tecnologicamente neutro. Do ponto de vista da economia política, ela levanta questões profundas sobre a relação entre poder, dados e capital. A cidade inteligente pode ser vista como uma nova frente para a acumulação capitalista e o controle social, onde as tecnologias que a alimentam – sensores, câmaras e plataformas de dados – coletam informações sobre a vida urbana que, num contexto capitalista, são frequentemente capturadas e privatizadas por grandes corporações tecnológicas.
Neste quadro, o direito enfrenta um desafio crucial. Em vez de proteger o cidadão, pode ser mobilizado para legitimar esta apropriação, através de leis de privacidade e proteção de dados que, na prática, garantam às empresas o monopólio sobre a monetização da informação. A adequação do direito a uma política de cidades inteligentes deve, portanto, ser uma reconfiguração ativa e transformadora das relações de poder. Implicaria tratar os dados coletivos como um bem comum, sob gestão pública e democrática, impedindo a sua privatização. Envolveria a criação de leis que incentivem tecnologias de código aberto e o controlo público sobre a infraestrutura digital.
Inspirado no conceito de Henri Lefebvre do “direito à cidade“, o direito no contexto digital deveria garantir que os cidadãos tenham o direito não apenas de usar os serviços da cidade inteligente, mas de participar ativamente na sua produção e governança. Isto significa desafiar a lógica da apropriação privada e buscar a democratização e a socialização da infraestrutura urbana e dos dados que ela gera. A inteligência suprema da cidade não residirá na sua capacidade de vigilância ou de eficiência comercial, mas na sua capacidade de empoderar institucionalmente os seus cidadãos e de distribuir de forma justa os benefícios do progresso tecnológico.
A trajetória chinesa
O percurso da China em direção à cidade inteligente é um fenômeno de múltiplas camadas. É, antes de tudo, um projeto de Estado, alimentado por uma cultura de planejamento de longo prazo e uma capacidade de implementação centralizada que não tem paralelo em escala e velocidade. É, em segundo lugar, um projeto tecnológico, sustentado por um ecossistema industrial nacional robusto que produz inovações de classe mundial, do 5G da Huawei ao ART da CRRC. E é, cada vez mais, um projeto humano, que evolui da pura eficiência tecnocrática (Smart City 1.0) para uma visão que coloca a felicidade, a participação e o bem-estar dos residentes no centro (Smart City 3.0).
Enquanto outras regiões, como a América Latina e a África, lutam com a favelização e a carência crônica de habitação acessível, a urbanização chinesa, apesar dos seus desequilíbrios iniciais (as “cidades fantasmas”), conseguiu, via intervenção estatal maciça, não só aumentar a percentagem da população urbana de 10,6% em 1949 para 66% no final de 2023, mas também melhorar drasticamente a qualidade do desenvolvimento urbano. A cobertura ferroviária de alta velocidade entre as cidades com população superior a 500 mil habitantes saltou de 28% em 2012 para 90% em 2021, simbolizando esta integração entre escala e qualidade.
A construção de cidades inteligentes oferece uma oportunidade histórica para os países do Sul Global impulsionarem um desenvolvimento inovador. A China, com a sua experiência única, está liderando esta tendência, não como um modelo a ser meramente copiado, mas como um repositório inestimável de lições, tecnologias e, sobretudo, de uma demonstração prática de que a inteligência urbana, quando conjugada com uma vontade política clara e um foco último no desenvolvimento humano, pode forjar um novo paradigma de civilização urbana para o século XXI. O núcleo da cidade inteligente, portanto, não é a inteligência da tecnologia, mas a inteligência de todas as instituições e pessoas capazes de utilizar ferramentas inteligentes de forma adequada e eficiente na busca do bem-estar coletivo, rumo a uma cidade verdadeiramente sustentável, resiliente e inclusiva.