Enquanto as cidades brasileiras respiram o ritmo frenético de dezembro, um processo legislativo denso e tecnicamente complexo, conduzido nos corredores do Congresso Nacional, pode estar gestando a mais profunda transformação no transporte público coletivo urbano das últimas décadas. Aprovações sucessivas e aparentemente áridas em comissões do Senado e da Câmara dos Deputados escondem a arquitetura de um novo sistema, cujos pilares buscam desmontar uma lógica falida e erguer, em seu lugar, um modelo que redefine desde os fluxos de financiamento até a própria concepção do direito à cidade.
O Projeto de Lei nº 3.278/2021, agora intitulado Marco Legal do Transporte Público Coletivo Urbano, não é uma mera atualização regulatória; é uma reengenharia institucional de potencial transformador, fruto de negociações políticas intensas e do lobby de entidades setoriais como a Confederação Nacional do Transporte (CNT) e a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU).
O cerne da proposta, que recebeu luz verde da Comissão de Infraestrutura do Senado em turno suplementar em dezembro de 2024 e, agora em dezembro de 2025, avança pela Câmara dos Deputados, reside em um diagnóstico claro: o modelo tradicional, sustentado quase que exclusivamente pela tarifa paga pelo usuário, é um círculo vicioso de insustentabilidade. Ele limita a expansão da rede, penaliza financeiramente a qualidade, onera os mais pobres e inviabiliza a integração de modais.
Portanto, a solução proposta é uma ruptura. O texto substitutivo, de relatoria do senador Veneziano Vital do Rêgo sobre proposta original do ex-senador Antônio Anastasia, institui a separação formal entre a tarifa cobrada do passageiro e a remuneração devida à empresa operadora. Esta é a pedra angular. Se a arrecadação tarifária for insuficiente para cobrir os custos do serviço pactuado em contrato, a diferença deverá ser coberta por recursos públicos. O sistema deixa de ser autofinanciado pelo usuário e se converte em um serviço público de responsabilidade estatal, ainda que possa ser operado pela iniciativa privada.
Para alimentar este novo modelo, o Marco Legal desenha um sofisticado — e ambicioso — leque de fontes de financiamento extra-tarifárias. A mais emblemática é a destinação de 60% dos recursos da CIDE-Combustíveis para investimentos no transporte público coletivo, um redirecionamento significativo de receita tributária federal. Além disso, a proposta prevê a captação de recursos via: emissão de títulos no mercado de capitais (operações estruturadas ou project finance); criação de fundos públicos ou parcerias com bancos de desenvolvimento; e, de forma mais inovadora, a captura da valorização imobiliária gerada por obras de infraestrutura de transporte (como estações de metrô ou BRT), que poderá ser taxada para financiar o próprio sistema.
O texto também abre espaço para receitas oriundas de tarifas de congestionamento sobre veículos individuais em áreas e horários críticos, cobranças por emissões de poluentes, exploração comercial de espaços em terminais, publicidade e até da indecente comercialização de créditos de carbono – algo que nem deveria existir – decorrentes da redução de emissões do sistema. É uma tentativa explícita de internalizar no custo do transporte individual os danos sociais e ambientais que ele gera, convertendo parte desse custo em subsídio para o transporte coletivo.
Outro divisor de águas está na questão das gratuidades e benefícios tarifários (para idosos, estudantes, pessoas com deficiência, etc.). O projeto estabelece que tais descontos devem ser integralmente custeados pelo poder público concedente (União, estado ou município), proibindo que seu ônus seja embutido na tarifa paga pelos usuários regulares ou descontado da remuneração das empresas. Isso resolve uma das disputas históricas e financeiras mais sensíveis do setor, transferindo a responsabilidade social para o Estado.
A governança do sistema também passa por um redesenho técnico. O Marco exige a criação de órgãos reguladores com autonomia administrativa e financeira nos entes federados, visando afastar a ingerência política direta na gestão cotidiana. A transparência é elevada a princípio estruturante em que todos os dados de custos, receitas, subsídios, desempenho operacional e impacto das gratuidades devem ser publicados, alimentando um Sistema Nacional de Informações da Mobilidade Urbana. A bilhetagem eletrônica se torna ferramenta obrigatória de gestão financeira e controle, preferencialmente sob gestão direta do poder público titular, permitindo auditoria precisa e combate a desvios.
No âmbito operacional, a proposta enfatiza a priorização de corredores exclusivos e faixas dedicadas, a integração física e tarifária entre diferentes modos (ônibus, metrô, VLT, balsas) e a definição de indicadores rígidos de qualidade e regularidade. O planejamento deve ser integrado ao plano diretor municipal e aberto à participação social, com a criação de um Fórum Nacional de Mobilidade Urbana. A contratação das empresas operadoras só poderá ser feita via licitação pública, banindo os tradicionais e opacos “contratos de programa”.
A tramitação do projeto é um estudo de caso em eficiência legislativa orientada por lobby técnico. Incorporando uma minuta elaborada pelo Ministério das Cidades com apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e ampla consulta pública, o texto navegou pelo Senado de forma terminativa na Comissão de Infraestrutura, evitando o plenário. Na Câmara, segue o rito conclusivo pelas comissões de Desenvolvimento Urbano, Viação e Transportes, Finanças e Tributação e Constituição e Justiça. O apoio de entidades como a NTU e a CNT foi crucial, articulando-se com um raro consenso entre urbanistas, ambientalistas (como o movimento Bicicultura) e o setor empresarial, todos percebendo ganhos potenciais na racionalização do sistema.
Contudo, o sucesso desta modernização regulatória dependerá de fatores hercúleos. A implementação exigirá capacidade técnica de municípios pequenos e médios para gerir contratos complexos, operar sistemas de bilhetagem e captar receitas alternativas. A dependência da vontade política para efetivamente onerar o transporte individual (com pedágios urbanos, por exemplo) é um campo minado. A destinação da CIDE exigirá persistência no contingenciamento orçamentário federal. E, por fim, o modelo pressupõe um aumento substancial no repasse de recursos públicos para o setor, uma aposta ousada em um cenário de restrição fiscal permanente.
Se vingar, o Marco Legal não promete apenas ônibus mais pontuais ou ar-condicionado que funcione. Ele propõe uma recalibragem do metabolismo das cidades, tornando o transporte coletivo o eixo estruturador do desenvolvimento urbano, um direito social essencial com financiamento estável e gestão técnica. É uma tentativa de substituir a lógica do caos e da precariedade por uma de planejamento e equidade. Seu destino, agora nas mãos dos deputados e, em breve, do Palácio do Planalto, definirá se as ruas do Brasil permanecerão um palco de exclusão e ineficiência, ou se poderão se tornar, finalmente, artérias de um sistema de mobilidade urbana mais justo e inteligente. A votação é sobre artigos e parágrafos; o impacto será sentido no suor do cotidiano de milhões e milhões de passageiros.
